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Consolidação da extrema direita em Portugal será herança desta eleição, diz cientista político

“Um aspecto muito interessante do partido Chega, de extrema direita em Portugal, é um sentimento de identidade com Bolsonaro”, explica o cientista político e professor da Universidade Lisboa, António Costa Pinto, em entrevista à RFI. “Portugal segue a política brasileira há muitos anos com grande intensidade e André Ventura [líder do Chega] criou esta ligação ideológica com Bolsonaro tentando associar Lula à corrupção e a [José] Sócrates, ex-primeiro-ministro socialista [de Portugal]”, explica.

O cientista político António Costa Pinto é professor da Universidade de Lisboa e é pesquisador de temas relacionados ao fascismo em Portugal e no mundo.
O cientista político António Costa Pinto é professor da Universidade de Lisboa e é pesquisador de temas relacionados ao fascismo em Portugal e no mundo. © RFI / Marcia Bechara
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Márcia Bechara, enviada especial da RFI a Lisboa

Segundo António Costa Pinto, o partido de Ventura “veio para ficar”. "A democracia portuguesa teve nos seus primeiros 20 anos um desafio fundamentalmente à esquerda, porque tinha um Partido Comunista forte, seguido de um partido da nova esquerda, ou da esquerda radical, relativamente forte, o Bloco de Esquerda, e esse era o grande desafio para o principal partido de centro-esquerda, o Partido Socialista. Hoje, o desafio mudou e está à direita", diz o pesquisador da Universidade de Lisboa, especializado em fascismo.

Para ele, o partido português "Chega", criado em 2019, "vai efetivamente ser um desafio à direita". "Portugal vai finalmente entrar no campo das democracias europeias, onde a direita radical populista é um desafio".

O professor compara a nova realidade política portuguesa ao que "o partido espanhol Vox representa para o Partido Popular na Espanha, ou o que a sigla de Geert Wilders na Holanda significa para a centro-direita holandesa. Como nestes países, em Portugal a direita radical populista também parece ter chegado para ficar".

Leia mais: Debate sobre imigração divide comunidade brasileira nas vésperas de eleições decisivas em Portugal

O cientista político observa que a Aliança Democrática (AD), coligação liderada pelo Partido Social Democrata (PSD) com um pequeno partido conservador que tinha desaparecido do Parlamento, está conseguindo reagir e recuperar alguns voto de direita que tinham migrado para o Chega. "Mas, de qualquer modo, é previsível que o Chega fique com entre 15% e 16% nestas eleições legislativas, portanto ele vai se tornar o terceiro partido do sistema partidário democrático português", pontua.

Ironia com o passado português?

Esta consolidação acontece, ironicamente, no momento em que o país celebra os 50 anos da Revolução dos Cravos, marco simbólico de Portugal na luta contra regimes autoritários. "Partidos como o Chega tentam recuperar o passado autoritário e reivindicar-se dele; no caso do Chega, um pouco menos porque o salazarismo, mesmo para os setores que votam à direita, está associado a um atraso econômico e social", diz. 

"Esse passado autoritário não mobiliza muito, mas é de fato uma ironia. E a ironia é a seguinte: estes partidos têm muito mais a ver com o presente do que o passado. Tem muito mais a ver com as crises das democracias liberais do que com os passados fascistas de direita radical ou ditaduras militares”, afirma o pesquisador.

Crise de confiança no governo socialista

Ele nota que, além de o pleito deste domingo acontecer em uma 'conjuntura populista' presente no resto do mundo, aspectos como a realização de eleições antecipadas e as sucessivas crises de governabilidade do governo socialista nos últimos meses levam "uma bela parte do eleitorado" a optar pela direita ou em outros partidos. 

"Eles têm a percepção de que o governo socialista, sobretudo nos últimos meses, não cuidou do Serviço Nacional de Saúde, não cuidou da governabilidade. É muito interessante observar como, muitas vezes, as eleições são dominadas mais pela percepção do que propriamente por aquilo a que nós poderíamos chamar de voto econômico", salienta António Costa Pinto.

Voto de protesto

"Nós sabíamos há muito tempo que cerca de 18 a 20% da sociedade portuguesa exprime e exprimia valores conservadores tradicionais de protesto contra os partidos políticos, simplesmente", diz Costa Pinto. "Até 2019, os dois partidos de centro-direita e de direita enquadravam esse segmento da sociedade, após oito anos de governo do Partido Socialista, à esquerda. Mas o Chega teve finalmente a possibilidade de entrar no Parlamento português com um deputado, e há que se reconhecer que, a partir daí, André Ventura conseguiu se conectar com esse segmento do eleitorado e crescer", analisa.

Uma xenofobia "flex"

"Nós muitas vezes pensamos que estes partidos de direita radical populista crescem porque são xenófobos. Eles crescem fundamentalmente porque unem valores conservadores, isso é evidente, mas com uma dinâmica extremamente flexível... O [partido] Chega, por exemplo, agora promove as ajudas sociais, ele que tinha um programa ultraliberal inicialmente", aponta o professor da Universidade da Lisboa.

"O Chega defende agora o ensino público e o Serviço Nacional de Saúde, ou seja, sob o ponto de vista da política social, esse partido de extrema direita tem até dimensões, por vezes quase anticapital financeiro", explica. "O Chega, tal como [a premiê italiana Georgia] Meloni, defende taxar os bancos dos lucros excessivos, um argumento da esquerda radical", lembra.

"Mas qual é o patrimônio fundamental e a razão fundamental que leva a este crescimento do Chega, como aliás de outros partidos: o tema da corrupção, capaz de mobilizar votos de protesto à direita, contra os políticos 'que são todos iguais' e inegavelmente, estas eleições em Portugal representam essa conjuntura populista", avalia o pesquisador.

Corrupção, o grande tema da direita radical

Para o cientista político, o governo [português] caiu porque António Costa se demitiu como primeiro-ministro socialista, com base numa acusação do sistema judicial que ainda está por ser provada”. “Em relação a ele, não havia praticamente nada [como provas], mas o tema da corrupção emergiu imediatamente porque, em Portugal, o tema da imigração ainda não era um tema que a direita radical pudesse explorar. Aliás, inicialmente explorou os ‘ciganos associados ao crime’. (ri) E eles estão há 500 anos em Portugal, em espelho com as sociedades europeias”, ironiza Costa Pinto.

“Por que isso acontece? Porque, de fato, a imigração cresceu em Portugal nos últimos cinco anos e sobretudo agora com uma imigração culturalmente muito diversa, a imigração portuguesa provinha fundamentalmente dos países africanos, lusófonos e do Brasil e agora tem uma nova onda do Nepal, do Paquistão, do Bangladesh”, relembra. “E, evidentemente, o [partido] Chega mobiliza também um segmento mais popular da sociedade, que pensa que a imigração vai lhe roubar o trabalho, o que não é verdade estatisticamente, mas muitas vezes vota-se por percepções e não com base na realidade”, conclui.

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