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Na contramão da Europa, Portugal tem política aberta de imigração, mas pode mudar após eleições

Com uma política migratória entre as mais abertas da Europa, Portugal viu sua população estrangeira dobrar em cinco anos, em parte graças à chegada de migrantes vindos do sul da Ásia para trabalhar na agricultura, na pesca e no setor de restaurantes. O fenômeno tem sido estimulado pelo governo socialista, no poder desde o fim de 2015, mas que poderá perder espaço se a direita vencer as eleições legislativas previstas para 10 de março.

Muçulmanos fazem fila para rezar em mesquita no bairro de Mouraria, em Lisboa.
Muçulmanos fazem fila para rezar em mesquita no bairro de Mouraria, em Lisboa. AFP - PATRICIA DE MELO MOREIRA
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Em São Teotônio, vilarejo do sudoeste de Portugal, são imigrantes do sul da Ásia que trabalham nas estufas e, nas ruas, há mais restaurantes nepaleses e indianos do que os estabelecimentos locais. Mesch Khatri, um nepalês de 36 anos, trabalha na coleta de frutas vermelhas, a principal atividade econômica da região. Sua esposa, Ritu, de 28 anos, administra o café Nepali. Seu filho mais velho, de sete anos, só fala português, um pouco de inglês, mas nada de nepalês.

O pai de família entrou na Europa pela Bélgica, mas preferiu se instalar em Portugal. "Lá é muito difícil conseguir um documento de residência. É por isso que vim para cá. É mais fácil de tirar os documentos", conta.

Após chegar em 2012, ele obteve o visto de residente em 2018 e a nacionalidade portuguesa em 2020. São Teotônio, com 9 mil habitantes, pertence ao município de Odemira, viu sua população aumentar 13% em dez anos.

O repovoamento se deve ao fluxo de mão de obra agrícola resultante da imigração, em uma região afetada por décadas pelo declínio demográfico causado pelo êxodo rural.   

'Precisamos deles'

Em 2018, o número de estrangeiros que viviam no país era pouco menor do que 500 mil – e disparou para 1 milhão no ano passado, o que representa um décimo da população de Portugal, segundo dados provisórios fornecidos à AFP pela Agência Governamental para a Integração, as Migrações e o Asilo (Aima).

Embora os brasileiros sejam, de longe, a maior população imigrante (cerca de 400 mil),os indianos (58 mil) e os nepaleses (40 mil) já são mais presentes que os residentes vindos de antigas colônias portuguesas da África, como Cabo Verde ou Angola.

Também sem laços históricos com Portugal, os bengaleses e os paquistaneses estão entre os cidadãos que ocupam as 10 primeiras nacionalidades que mais escolhem o país.

"A razão principal pela qual Portugal viu aumentar o número de imigrantes nos últimos anos é que precisamos deles", resume o presidente da Aima, Luís Goes Pinheiro, ressaltando que Portugal é o país com a taxa de envelhecimento mais alta da Europa, depois da Itália.

Longe do "mar de plástico" formado pelas estufas de São Teotônio, em uma região remota do noroeste do país, Luís Carlos Vila também depende da mão de obra estrangeira para colher suas maçãs. "Não há escolha, a população é idosa e não há mão de obra agrícola", explica.

Em seus pomares, em Carrazeda de Ansiães, seis indianos trabalham na poda das árvores. "Eu amo Portugal. O dinheiro é bom, o trabalho é bom, o futuro é bom. Na Índia, não há futuro", diz um deles, Happy Singh, em inglês.

O patrão passa por associações de recrutamento para encontrar trabalhadores. Com eles, reencontra parte de sua própria história familiar: "Meu pai também teve que deixar Portugal para ganhar a vida na França”, revela.

Políticas generosas

Na comunidade de pescadores de Caxinas que, na periferia do Porto (norte), encarna o laço tradicional dos portugueses com o mar, metade das tripulações é formada por indonésios. No leme de seu pesqueiro de 20 metros, José Luis Gomes, chefe de pesca assim como seu pai e seu avô, se resignou ao fato de que os portugueses abandonaram esta profissão difícil ou partiram para exercê-la em outro lugar, com melhores salários.

Recrutado por intermédio de associações de armadores, o javanês Saeful Ardani, de 28 anos, está em seu quarto contrato de 18 meses a bordo de "O Fugitivo".

"Os pescadores indonésios que trabalham aqui não têm nenhuma preocupação", afirma. "Nossas famílias estão seguras porque não estamos em situação ilegal".

Portugal, país de emigração no século XX, já havia se tornado um país de imigração na virada do século XXI. Nos últimos anos, houve "um crescimento significativo, com alguns aspectos novos", comenta Jorge Malheiros, especialista em migrações da Universidade de Lisboa.

"Seja qual for o indicador, é um dos países mais generosos" em matéria de política migratória da Europa, explica o geógrafo.

Desde 2007, a legislação portuguesa permite a todos que declaram imposto de renda obter os documentos – não tendo mais que aguardar por longos processos de regularização.

Outra grande mudança ocorreu em 2018, quando o governo socialista concedeu o direito à regularização até para quem não entrou legalmente no território. Uma nova emenda, introduzida em 2022, prevê inclusive um visto temporário de seis meses para os estrangeiros em busca de emprego. 

Aumento do racismo

"As leis portuguesas não são perfeitas, mas são melhores do que as de muitos países com políticas retrógradas", comemora Timóteo Macedo, encarregado da associação Solidariedade Imigrada.

Essa legislação ajuda a evitar os dramas de passageiros clandestinos ou o medo da expulsão, como em outros lugares da Europa, mas não impede que em Portugal também "haja aqueles que ganham muito dinheiro às custas da miséria humana", acrescenta. As autoridades portuguesas já desmantelaram várias redes de tráfico de seres humanos na região do Alentejo, revelando condições de alojamento indignas de certos trabalhadores agrícolas.

Apoiada no balcão de seu café em São Teotônio, Mesch Khatri admite que o fluxo de imigrantes traz novos desafios. "Antes era mais fácil ganhar a vida. Agora há mais racismo entre os portugueses. Eles não gostam quando as pessoas vivem em grupos de dez ou 15 em uma casa, ou quando não falam português", acrescenta sua esposa, Ritu.

Voluntária em um centro de apoio escolar que recebe cerca de 20 crianças, das quais apenas uma tem nome português, Julia Duarte, de 78 anos, morou por muito tempo em Lisboa antes de se mudar para São Teotônio. "Eu dizia que iria aproveitar minha aposentadoria em paz, e depois veio uma avalanche" de trabalhadores migrantes, conta ela. "Veio gente demais, foram muitos inconvenientes. Todos procurando alojamento, trabalho. Depois, percebi que são pessoas tranquilas", relembra.

Dedicada a ajudar imigrantes, a ONG Taipa se concentrou, com o passar dos anos, a promover a integração deles na região. "Há dez ou 15 anos, não estávamos prontos para isto", confidencia a diretora da organização, Teresa Barradas. "É um desafio muito importante para uma comunidade mais fechada, que não estava habituada a diferenças culturais tão grandes.”

Além disso, "o principal problema" para receber os imigrantes continua sendo a falta de alojamento, "sobretudo para as famílias”. Segundo a lei portuguesa, elas têm o direito de se reunir, isso é, o imigrante pode trazer sua família de outro país e "isso tem um papel muito importante para desarmar os preconceitos, porque nós queremos que nossos vizinhos sejam uma família completa, cujos filhos vão à escola com os nossos", afirma.

O diretor da agência para recepção de estrangeiros, Luís Goes Pinheiro, confirma. "A reunião familiar é extremamente importante para garantir uma integração plena e a fixação dos migrantes, em particular nas regiões onde a densidade populacional é muito frágil".

‘Rua de Bangladesh' em Lisboa

Eixo central desta parte antiga de Lisboa, a Rua do Benformoso tem tantos comércios e restaurantes bengaleses que ganhou o apelido de "Rua de Bangladesh", conta Yasir Anwar, um paquistanês de 43 anos, estabelecido aqui desde 2010.

Após chegar sem visto na sequência de breves passagens por Dinamarca e Noruega, ele foi ameaçado de expulsão antes de conseguir os documentos graças às emendas legislativas de 2018. Após percorrer as ruas vendendo flores em bares e restaurantes, Anwar foi contratado pelo dono de um restaurante, com quem ele aprendeu a gastronomia e a língua portuguesas.

Hoje, ele aguarda a cidadania portuguesa, o que costuma ser possível após cinco anos de residência legal, e espera trazer sua mulher e os dois filhos.

"Quando eu cheguei, não havia nada para nós", relembra este voluntário da Solidariedade Imigrada. Depois, "Portugal se tornou um bom país para os imigrantes e os recebe de braços abertos".

Pesquisas de opinião mostram que "Portugal está entre os países europeus onde a população não considera a imigração um dos principais problemas de seu cotidiano, ao contrário do que acontece por toda a Europa, e que sua reação ao fenômeno migratório se mantém positiva", confirma o presidente da Aima.

Embora as pesquisas eleitorais antecipem um novo impulso do Chega, partido de extrema direita criado em 2019, a imigração só aparece em sétimo lugar entre as prioridades de seu programa.

Reportagem AFP

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