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Com produção de Kleber Mendonça Filho, longa alemão filmado no Recife estreia na Berlinale 2024

“Dormir de Olhos Abertos”, da cineasta alemã Nele Wohlatz, convida a uma reflexão sobre o mito de um Brasil sempre acolhedor aos imigrantes. Para Kleber Mendonça Filho, o longa “é quase como estar ouvindo uma conversa alheia”.

Cena do longa "Dormir de Olhos Abertos", da diretora alemã Nele Wohlatz.
Cena do longa "Dormir de Olhos Abertos", da diretora alemã Nele Wohlatz. © Divulgação
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Daniella Franco, enviada especial da RFI a Berlim

Como o Brasil, país de natureza exuberante, com um povo receptivo e caloroso, durante o período festivo do Carnaval, pode ser igualmente um meio rude e excludente? É a esse universo que chega a taiwanesa Kai (Liao Kai Ro), após uma decepção amorosa que a leva um Recife inóspito e traiçoeiro, onde o único contato que consegue estabelecer é com o imigrante chinês Fu Ang (Wang Shin-Hong).

Em “Dormir de Olhos Abertos”, Nele Wohlatz traz um olhar cirúrgico do Brasil como um paraíso surpreendentemente hostil a estrangeiros e de um cotidiano de invisibilização e desprezo do imigrante. O pano de fundo é um condomínio de luxo na capital pernambucana, onde trabalhadores chineses vivem confinados em quarto exíguo e são alvo de agressões verbais e chacotas da burguesia recifense.

Segundo Wohlatz, a ideia do longa surgiu após uma conversa com o diretor brasileiro Kleber Mendonça Filho, que durante um encontro na Festival Internacional do Filme de Viena, em 2016, comentou sobre a tensão social existente entre imigrantes chineses e a classe média alta pernambucana nas célebres Torres Gêmeas de Recife. Na época, a cineasta alemã lançava na capital austríaca o longa “El Futuro Perfecto”, sobre a experiência de uma jovem chinesa em Buenos Aires.

Retrato do mundo e do Brasil

Em entrevista à RFI, após a estreia do longa na 74ª edição do Festival Internacional de Cinema de Berlim, Kleber Mendonça Filho, que assina a produção do longa com esposa Emilie Lesclaux, relembrou o episódio. Para ele, o olhar de Wohlatz é algo “muito incomum como um retrato do mundo e do Brasil”.

“O filme enriquece o vocabulário da ideia de sermos brasileiros, principalmente por ser enquadrado por uma estrangeira”, diz Kleber. “É interessante como brasileiro assistir a esse filme, é quase como estar ouvindo uma conversa alheia”, avalia.

O cineasta elogia “a pureza” de cenas escritas pela alemã que, com um olhar isento e exterior, leva uma das personagens chinesas, Xiao Xin (Chen Xiao Xin), a confundir uma empregada doméstica com a mãe da amiga brasileira. Ou quando a protagonista Kai se perde na periferia de Recife e após caminhar por horas, e acaba indo dormir em um motel, sem saber que o local é destinado a encontros sexuais.

“A gente tendo visto e filmado muitos filmes no Recife foi muito interessante ter uma outra visão da cidade, um outro olhar. Acho que não há outro filme no Recife feito desta forma e todo falado em outro idioma”, destaca Emilie Lesclaux.

De fato, os diálogos em “Dormir de Olhos Abertos” transitam entre o chinês, o inglês, o espanhol e o português. Com exceção do franco-argentino Nahuel Pérez Biscayart, boa parte do elenco é estreante, o que suscita ainda mais legitimidade à trama.

“Eu acho também que a intenção não era fazer um filme sobre a realidade brasileira. Esse filme poderia se passar em outros lugares, em outra grande cidade latino-americana”, pondera Emilie. Para Kleber, o longa se concentra no sentimento de deslocamento dos estrangeiros, “e ocorre que esse lugar no filme é o Brasil”.

A produtora francesa Emilie Lesclaux e o diretor e roteirista brasileiro Kleber Mendonça Filho na 74ª edição do Festival Internacional de Cinema de Berlim.
A produtora francesa Emilie Lesclaux e o diretor e roteirista brasileiro Kleber Mendonça Filho na 74ª edição do Festival Internacional de Cinema de Berlim. © Daniella Franco/RFI

Sombras do paraíso

A direção de arte do longa ficou a cargo do paulista Diogo Hayashi, que desconhecia a capital pernambucana até embarcar no projeto de Wohlatz, “um espaço tão novo para mim quanto é para os personagens no filme”. Em entrevista à RFI, ele contou que sua experiência como estrangeiro nos Estados Unidos e o fato de ser neto de imigrantes japoneses foi fundamental para a construção visual do universo de “Dormir de Olhos Abertos”.

“Estar em Recife numa condição de trabalho, porém com um olhar voltado a descobrir e traduzir a cidade como um lar ou talvez como um lugar de passagem, foi um desafio”, relembra.

“Eu estava descobrindo o espaço junto com os personagens: as ruas, as comidas vendidas nas ruas, os produtos que se vendem nas lojas, como esses produtos chegam ali, as coisas regionais que influenciam as pessoas, a maneira como os imigrantes integram a cultura do lugar... Eu ia absorvendo essa cultura junto com eles”, ressalta.

Entre os traços marcantes deste universo paralelo aos estrangeiros o filme retrata, Diogo relembra a busca com a diretora alemã do que chama de “sombras do paraíso” em Recife, como espaços invadidos pelo mercado imobiliário e áreas abandonadas nas grandes praias. Essas espécies de limbos na cenografia, reforçam ainda mais o sentimento de exclusão e solidão relatados na obra de Nele Wohlatz.

Metáfora do não pertencimento, em uma das cenas chave do longa, o personagem Fu Ang resolve afrontar o mar de Boa Viagem, depois de um dia inteiro tentando, em vão, vender boias. Ao reencontrar com Kai, ela adverte o amigo ao perceber suas roupas molhadas sobre os perigos de entrar em um mar “cheio de tubarões”.

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