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A decisão de voto em uma sociedade digital

Esfera pública cindida, opiniões medidas por likes, políticos reféns da lógica das redes digitais. De fato, há muitos motivos de preocupação. No entanto, é um equívoco pensar que as novas mídias on-line são apenas um perigo para a democracia. Elas são um espaço onde vozes marginalizadas podem se expressar. Estimulam o conflito, mas em si isso não precisa ser um problema. Sem disputa política não há democracia, não há questionamento de desigualdades

A cada eleição, o número de influenciadores digitais eleitos aumenta, onde o ambiente de campanha é permanente
A cada eleição, o número de influenciadores digitais eleitos aumenta, onde o ambiente de campanha é permanente © Antônio Cruz/Agência Brasil
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Nina Santos e Thomás Zicman de Barros

Em 2024, diversas eleições ocorrerão ao redor do mundo, e há uma crescente demanda por medir como o ambiente digital influencia o voto do cidadão. Apesar de termos cada vez mais dados sobre o comportamento e os interesses dos eleitores e uma capacidade crescente de produzir ações de comunicação personalizadas nas novas plataformas digitais, mensurar o impacto desse ambiente no voto não é tão simples. Isso porque entre o uso de uma tecnologia de comunicação – seja ela digital ou não – e a decisão do eleitor não há um salto direto.

Para entendermos o processo complexo que liga o espaço digital ao voto é preciso considerar ao menos três dimensões. Em primeiro lugar, a influência da tecnologia no modo como as pessoas formam suas visões de mundo, leem a realidade e compõem o que Hannah Arendt chama de mundo comum. Em segundo lugar, o efeito da tecnologia na forma como a circulação social de opiniões – a chamada opinião pública – é percebida. Em terceiro lugar, o impacto da tecnologia na maneira como os cidadãos veem o papel de seus representantes.

As mídias sociais digitais transformam profundamente todas essas esferas. As visões de mundo se tornam cada vez mais segmentadas, a opinião pública passa a ser medida de forma contínua, e os líderes são instados a serem próximos, fiéis e imediatamente responsivos a seus representados. Compreender essa equação complexa é fundamental para avaliar o efeito das novas tecnologias no comportamento eleitoral. Ao percorrermos esse caminho, no entanto, entendemos que o ambiente digital atual não apenas altera resultados de eleições, mas também transforma profundamente as bases da democracia.

Superando a democracia do público

A ideia de que o ecossistema de comunicação desempenha papel central nas transformações da democracia e dos processos eleitorais não é nova. Em um texto clássico sobre as metamorfoses do governo representativo, Bernard Manin mostra como, ao longo da história da democracia moderna, cada momento de transformação profunda nos meios de comunicação foi acompanhado por uma percepção de crise política.

Antes da mídia de massa, a comunicação era segmentada, reproduzindo e reforçando as clivagens de classe social. Notadamente em países ricos, os operários viviam em bairros operários, liam jornais operários em geral alinhados a partidos operários e votavam consistentemente nesses partidos. Nisso que Manin chamava de democracia dos partidos, havia uma “sociologização” da opinião pública e da política eleitoral, que as alinhava e as tornava bastante estáveis. O advento da televisão, somado a outras transformações no mercado de trabalho, mudou essa realidade. Transitou-se da democracia dos partidos para o que Manin chama de democracia do público.

A televisão se dirigia a todos os cidadãos e produzia uma percepção mais uniforme da realidade. O formato da comunicação televisiva também estimulou uma política mais personalista, na qual partidos e planos de governo perderam importância. Políticos passaram a se comunicar “diretamente” com os eleitores, driblando o papel dos partidos como mediadores. E os candidatos mais bem-sucedidos foram os que dominaram essas novas formas de comunicação, que tinham desenvoltura atrás do microfone ou diante da câmera. Não à toa, eram comuns os apelos para que radialistas e personalidades da televisão se aventurassem na política eleitoral – como foi o caso de Silvio Santos em sua malfadada campanha presidencial de 1989.

A imagem que Manin apresenta da democracia do público é, porém, de um eleitorado apático. Sem vínculos de sociabilidade de classe tradicionais, o eleitor é retratado como um sujeito isolado sentado em frente à TV, convencido a votar em um candidato da mesma maneira como é convencido a comprar um produto de um canal de televendas. 

Alguns podem pensar que o surgimento das mídias sociais digitais apenas aprofundaria as tendências da era da televisão. E de fato talvez haja elementos nesse sentido. No entanto, uma análise mais aprofundada das dinâmicas das novas plataformas revela que estamos lidando com fenômenos de outra natureza. Mesmo onde aparentemente ocorre uma ampliação das tendências da democracia do público, na realidade estão em curso processos com resultados muito diferentes. 

A formação de uma visão de mundo na era da economia da atenção

Dois temas preocupavam Hannah Arendt em suas reflexões sobre a esfera pública: saber quem pode aparecer no espaço público e entender como as pessoas compartilham entendimentos comuns sobre a realidade. Esses pontos aparecem respectivamente em duas noções fundamentais: espaço das aparências e mundo comum. O espaço das aparências é onde as pessoas podem ser vistas e ouvidas. Não se trata de um espaço concreto, mas de um espaço virtual de trocas simbólicas com base no qual os membros de uma comunidade são capazes de formar visões sobre suas sociedades. Para Arendt, a constituição do espaço das aparências caminha junto com a constituição de um mundo comum, baseado em conhecimento, normas e linguagens comuns.

É possível pensar como as diferentes configurações de mídia constituem, transformam e às vezes ameaçam tanto o espaço das aparências quanto esse mundo comum. Como vimos, na era da televisão parecia haver um entendimento compartilhado sobre a realidade que nos cerca. Ao mesmo tempo, nem todas as pessoas podiam ser vistas e ouvidas. Os meios de comunicação se concentravam nas mãos de poucos, o que excluía alguns sujeitos do espaço das aparências. O surgimento das mídias sociais digitais transformou todas essas dinâmicas, nos mais diversos sentidos.

As novas mídias parecem driblar os gatekeepers tradicionais. Apesar de serem mídias – ou seja, meios –, há certo imediatismo nas plataformas digitais. A comunicação não apenas se tornou mais rápida, mas também passou a ocorrer na ausência de filtros tradicionais. Paolo Gerbaudo afirma mesmo haver uma dimensão “populista” nas mídias sociais digitais. Há a percepção de que elas permitem ao cidadão comum se expressar à revelia da mídia tradicional, por isso seriam veículos para a “voz do povo”, dos “debaixo” contra as elites poderosas “de cima”. Elas borram a fronteira entre produtores e consumidores de conteúdo, transgridem as regras de quem pode e quem não pode aparecer na política, e abrem espaço para uma infinidade de vozes antes marginalizadas. Driblar certos intermediários traz inegáveis vantagens, mas também perigos. Embora a mentira sempre tenha existido na política, as mídias digitais deram origem ao fenômeno das fake news, que se espalham por todos os lados na alta velocidade das redes on-line. Com a substituição dos mediadores tradicionais, torna-se mais difícil construir e manter um consenso mínimo sobre a verdade factual. 

Se falamos de substituição, e não de fim de intermediários, é para apontar outro dilema relacionado às mídias digitais. Apesar de as novas plataformas desafiarem o domínio dos grandes grupos de mídia tradicionais e parecerem “democratizar” a comunicação, elas constituem outro oligopólio: o das big techs. No imprescindível livro A superindústria do imaginário (Autêntica, 2021), Eugênio Bucci explica que o modelo de negócios dessas empresas depende da extração de uma commodity específica: o olhar dos usuários. Na chamada economia da atenção, a comunicação, que antes era um acessório do capitalismo, se torna a alma do negócio. O objetivo é manter o usuário vidrado na telinha. 

Conforme Bucci aponta, na busca por capturar a atenção dos usuários, os algoritmos das plataformas tendem a dividi-los em grupos e veicular discursos que acentuam essas divisões. Sigmund Freud dizia que nada é mais poderoso para ligar um conjunto de pessoas do que encontrar adversários em comum dos quais falar mal. Percebendo essa tendência, mesmo que de modo não intencional, a maneira como os algoritmos funcionam hoje favorece a difusão de conteúdos que opõem um grupo a outro, pois são essas as mensagens que geram mais engajamento. Nesse processo, o mundo comum de que falava Arendt se fragmenta. Em certa medida, retornamos às dinâmicas de comunicação segmentadas que vigoravam antes da democracia do público. A comunicação deixa de ser de massa e volta a ser feita por nichos, ainda que seguindo uma nova lógica.

A percepção da opinião pública na era do like

Em paralelo à segmentação da esfera pública, o ambiente digital atual produz uma mudança na maneira como as pessoas percebem a chamada opinião pública. A percepção da opinião de terceiros sempre afetou as decisões dos cidadãos. É por isso que, ao longo da história, técnicas diferentes foram usadas para sentir para que lado os ventos da opinião sopravam. Na França pré-revolucionária, por exemplo, a monarquia espalhava informantes à paisana em diferentes locais da capital para identificar opiniões contrárias ao governo e prevenir ou enfrentar contestações. Já após a revolução, os governantes passaram a buscar na imprensa informações sobre o que pensavam os chamados líderes de opinião. Estes eram considerados observadores privilegiados das dinâmicas sociais e, portanto, mais capazes de retratá-las.

Em sua tipologia da democracia do público, Manin dá especial atenção à principal forma como a opinião foi aferida na segunda metade do século passado: as pesquisas de opinião pública. Além de se tornarem fundamentais para que campanhas soubessem o que dizer no rádio e na TV, o surgimento dessas sondagens mais rigorosas mostra uma mudança profunda no entendimento da política. A opinião anedótica de pessoas comuns ou dos líderes com espaço na imprensa perdeu importância em favor de uma prática que equipara todos os cidadãos e considera todas as opiniões como equivalentes.

O advento das mídias sociais digitais produz novas transformações no modo como a opinião pública é percebida. Em contraste com o passado, quando a opinião era medida em momentos específicos – na conversa com informantes, na leitura de jornais ou na análise de pesquisas –, na era das redes digitais o contato com mensurações de opinião é constante. Basta que um conteúdo seja postado para que imediatamente passe a receber reações que estarão plenamente visíveis para os usuários. 

Ao terem acesso a uma informação nas principais plataformas digitais, as pessoas veem não apenas um conteúdo publicado por alguém, mas também uma série de reações a ele. Por isso, Gerbaudo sugere haver uma dimensão plebiscitária nessas plataformas. Como ele diz, são poucos os usuários com capacidade de pautar as redes de forma sistemática. Para a maioria, a interação principal é a “curtida” e o compartilhamento, que funcionam como um plebiscito informal. Um plebiscito que se retroalimenta, visto que a quantidade de interações a uma postagem é um dos critérios para que ela apareça no feed de mais internautas e incite mais engajamento. Em um cenário de comunicação segmentada, esse “plebiscito do like” se torna central no modo como os usuários percebem a opinião pública e tomam decisões.

O ideal de liderança na era dos influencers

Uma terceira mudança gerada pelo ambiente digital envolve os ideais que usamos para avaliar nossos líderes. As novas mídias parecem aprofundar a personalização da política que já se verificava na democracia do público, mas suas dinâmicas são diferentes e produzem novos resultados. As lideranças que emergem hoje não são mais as personalidades que dominavam a lógica do rádio e da televisão, mas de uma espécie típica das novas mídias: o influencer. A cada pleito, o número de influenciadores digitais eleitos aumenta. E mesmo candidatos com outras trajetórias buscam incessantemente compreender a lógica das redes e se adequar a ela para sobreviver na política. 

A conversão dos políticos em influenciadores digitais tem inúmeras consequências. Tanto nos tempos do jornal impresso quanto na era do rádio e da televisão, políticos eram figuras inacessíveis. É verdade que Adhemar de Barros afirmava usar seus programas de rádio para “entrar na casa” do cidadão e estar próximo do eleitorado, mas restava uma distância intransponível. É essa distância que as mídias sociais digitais prometem eliminar. Elas recriam uma impressão de “proximidade” que havia sido perdida com o surgimento da democracia de massas. Com ou sem razão, o eleitor se sente de fato próximo de seu candidato e valoriza essa proximidade. O eleitor pode escrever comentários e enviar mensagens ao candidato. Mais do que isso, a hiperexposição da vida pessoal que reina na era das plataformas digitais, com livesstoriesreels e afins, colabora para a percepção de que o político é uma pessoa como outra qualquer, alguém ao alcance de um clique.

Essa aparente proximidade leva muitos a pensar que a representação política deveria funcionar nos moldes do que se chama mandato imperativo. Quando os políticos pareciam inacessíveis e a informação circulava mais devagar, o principal meio de controle dos representantes pelos representados era o voto a cada campanha eleitoral. Durante o mandato, o representante tinha alguma liberdade de ação para negociar e buscar convergência com outras forças políticas. Entre uma eleição e outra, os cidadãos descontentes com a postura do eleito podiam até se manifestar, escrever abaixo-assinados e organizar protestos, mas isso era bastante custoso e pouco efetivo.

Com as mídias sociais digitais, a dinâmica mudou. A margem de manobra dos políticos se reduziu, e o controle de seus atos e votos é feito ao vivo. É como se vivêssemos num ambiente de campanha permanente. Os políticos se confrontam com o mesmo paradoxo relatado por vários influencers: em vez de influenciar e ditar tendências, eles se veem pressionados por seus seguidores-eleitores a reforçar opiniões preexistentes. O perfil dos candidatos se adapta a essa realidade, e cresce a preocupação dos políticos em demonstrar fidelidade a seu nicho eleitoral. Sobretudo, não se pode “trair” o eleitorado, ou o ataque no plebiscito das redes é certo. Mudam, portanto, os critérios do que se busca em lideranças e representantes, e caminha-se, assim, para um ambiente político com figuras menos afeitas a acordos e composições.

Entre vícios e virtudes

Esfera pública cindida, opiniões medidas por likes, políticos reféns das redes digitais. À primeira vista, nosso diagnóstico é lúgubre. De fato, há muitos motivos de preocupação. No entanto, é um equívoco pensar que as novas mídias on-line são apenas um perigo para a democracia. Como vimos, elas são um espaço onde vozes marginalizadas podem se expressar. Elas estimulam o conflito, mas em si isso não precisa ser um problema. Sem disputa política não há democracia, não há questionamento de desigualdades. Por fim, a demanda por um mandato imperativo estimulada pelas redes é legítima, e seria estranho achar ruim que líderes tenham de prestar contas a seu eleitorado com frequência. 

A predominância de estruturas privadas, não reguladas e orientadas por lógicas que pouco dialogam com o interesse público é a principal razão pela qual as potenciais virtudes do ambiente digital acabam se deteriorando em vícios. Ao compreendermos as nuances de como as novas mídias impactam a esfera pública, adquirimos ferramentas para pensar maneiras de transformar essas novas tecnologias de forma a aprofundar a democracia, em vez de ameaçá-la.

*Nina Santos é diretora do Aláfia Lab, coordenadora do *desinformante e pesquisadora no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD); e Thomás Zicman de Barros é pesquisador pós-doutoral no Centro de Ética, Política e Sociedade (Ceps) da Universidade do Minho (Portugal) e pesquisador associado ao Centro de Pesquisa Política (Cevipof) da Sciences Po (França).

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