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Brasil

Relevar ou negar a existência da ditadura militar é perigoso para o Brasil, advertem historiadoras francesas

A ideia de que a ditadura foi um período positivo para o Brasil ou mesmo da revisão da expressão "golpe militar" para “revolução” ou “movimento” vem sendo propagada por políticos conservadores nos últimos anos. Desde a época em que era deputado, Jair Bolsonaro nunca escondeu sua admiração pelos militares. Agora, na presidência, o pesselista nega a existência de um regime ditatorial que durou 21 anos no país e impôs que o aniversário de 55 anos da intervenção de 31 de Março de 1964 seja comemorado, uma iniciativa vista com repúdio por historiadoras francesas especialistas em Brasil entrevistadas pela RFI.

Bolsonaro participa da formatura e diplomação de militares, no Rio de Janeiro.
Bolsonaro participa da formatura e diplomação de militares, no Rio de Janeiro. Fernando Frazão/Agência Brasil
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Para Maud Chirio, professora da Universidade de Paris-Est Marne-La-Vallée, o discurso em favor da ditadura militar não é um fenômeno recente, sempre existiu entre os setores mais conservadores da sociedade brasileira, mas se acentuou com a chegada de Bolsonaro ao poder. O pesselista chegou a afirmar, em 2016, que “o erro da ditadura foi torturar e não matar” e diversas vezes prestou homenagem ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, único brasileiro declarado como torturador pela Justiça, mas morreu antes de ser condenado.

A romantização do período também é realizada por outros membros do governo de extrema direita. Como o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, que afirmou na quarta-feira (27) que a intervenção militar de 1964 não foi “um golpe”, mas “um movimento necessário para que o país não virasse uma ditadura”. Ou o vice-presidente Hamilton Mourão que defendeu “uma revisão histórica” do período.

“A mudança que estamos vendo hoje é a imposição desta memória positiva, que até então era uma memória minoritária, que só era dominante em certos setores das Forças Armadas e setores civis muito conservadores, mas passou a ser a memória oficial, a da presidência da República”, observa Chirio, especialista em História Contemporânea brasileira.

Na quarta-feira, em entrevista à TV Bandeirantes, ao tentar justificar a decisão de ordenar a comemoração do aniversário de 55 anos do Golpe Militar de 1964 pelas Forças Armadas, Bolsonaro afirmou: “não houve ditadura”, deixando clara sua posição sobre como vê o período governado por militares durante 21 anos no Brasil. Na época, cerca de 20 mil opositores foram torturados e 434 pessoas foram assassinadas ou desapareceram.

Satisfação de setores militares

Chirio avalia que a postura do presidente brasileiro sobre a questão tem o objetivo de agradar alguns setores militares. Mas, ressalta: “Bolsonaro sempre foi um defensor da ditadura e da repressão violenta deste período. A aclamação do coronel Ustra e de seu discurso é prova disso. Há trinta anos Bolsonaro é uma voz que insiste na necessidade da repressão e na ideia de que a ditadura militar brasileira não foi grave”, ressalta.

Para a historiadora, há ainda uma segunda razão para o presidente determinar a volta das comemorações do 31 de Março pelas Forças Armadas, retirada do calendário oficial do Exército em 2011 pela ex-presidente Dilma Rousseff. “É um primeiro passo para a imposição desse novo discurso oficial em relação à ditadura. Os meios militares são só o primeiro espaço. Eu temo que, em seguida, as universidades e as escolas sejam invadidas por essa narrativa que não só é moralmente condenável, mas que também se apoiam em resultados que são cientificamente falsos”, afirma.

Chirio se refere à falsa ideia disseminada por defensores da ditadura de que o Golpe de 1964 foi “uma revolução” ou “um movimento” apoiado pela opinião pública. “Houve setores da burguesia e da classe média que apoiaram, mas eles eram minoritários em uma sociedade que era praticamente constituída de classes populares. Pesquisas de opinião que já existiam na época indicam que o golpe não era um desejo da população que, majoritariamente, apoiava as reformas de base do presidente João Goulart e o governo dele”, diz.

Crimes da ditadura como “façanhas ou proezas”

Segundo a historiadora Armelle Enders, professora da Universidade Paris 8 e pesquisadora do Instituto de História do Tempo Presente, mais perigoso do que relevar a gravidade do período militar é “enaltecer os crimes da ditadura como se fossem façanhas ou proezas”.

A especialista em História Contemporânea do Brasil lembra, por exemplo, o último discurso de Bolsonaro antes do segundo turno das eleições, em 21 de outubro de 2018. Em tom de vitória, o pesselista prometeu, se fosse eleito, que enviaria seus opositores e os militantes da esquerda para “a ponta da praia”. A expressão é utilizada por militares para designar locais clandestinos onde torturas e assassinatos eram realizados durante a ditadura.

Muito mais que a falta de decoro do presidente, Enders acredita que a negação ou romantização da ditadura faz parte de um projeto político dele. “O clã Bolsonaro está apostando nessa radicalização há tempos, pensando que já há uma base popular que surgiu com a Lava-Jato contra os políticos e a política em geral”, diz.

Para a professora, a falta de reação das instituições contra o discurso radical de Bolsonaro, desde a época em que era deputado, abriu espaço para que seu projeto de poder pudesse ser instalado sem maiores dificuldades. “Não houve uma frente republicana para barrar o que vai de encontro com a democracia no Brasil”, observa. O fenômeno mostra que “a sociedade brasileira ainda não tem anticorpos democráticos”, afirma.

Ongs e sociedade protestam

Desde que Bolsonaro ordenou a comemoração do Golpe de 1964 pelas Forças Armadas, Ongs defensoras dos direitos humanos se manifestam contra a iniciativa. Na quarta-feira, a Human Rights Watch emitiu um comunicado condenando a decisão do presidente. “É isso que Bolsonaro está celebrando: 4.841 representantes destituídos do cargo, aproxidamente 20 mil pessoas torturadas, pelo menos 434 pessoas mortas ou desaparecidas”, afirma a ONG.

Um grupo formado por vítimas da ditadura e familiares de pessoas que foram mortas no período protocolaram na quarta-feira um Mandado de Segurança e uma Ação Popular contra a decisão de Bolsonaro. “Sob nenhuma legislação nacional ou internacional é lícito ou aceitável que se festeje o marco inicial de um regime caracterizado pela repressão e eliminação de opositores políticos, pela tortura, pelos desaparecimentos forçados e pela morte perpetrada por agentes do Estado”, diz uma nota de repúdio assinada por diversas personalidades, entre eles, familiares do jornalista Vladimir Herzog, torturado e assassinado no DOI-CODI de São Paulo, em outubro de 1975.

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