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Saúde em dia

França: médicos residentes denunciam carga de trabalho que induz suicídios e erros

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Desde o início de 2021, cinco médicos residentes se suicidaram na França, o que corresponde a um estudante a cada 18 dias – três vezes mais do que a média da população geral do país.

Os médicos residentes franceses acumulam plantões para enfrentar a epidemia e a demanda de pacientes com outros problemas de saúde
Os médicos residentes franceses acumulam plantões para enfrentar a epidemia e a demanda de pacientes com outros problemas de saúde REUTERS - STEPHANE MAHE
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Taíssa Stivanin, da RFI

No dia 2 de maio de 2019, Élise, 24 anos, jovem estudante francesa de Medicina que fazia sua residência no setor de gastroenterologia de um hospital de Lyon, teve uma crise de pânico em seu apartamento. Ela se suicidou ingerindo betabloqueadores, medicamentos usados para tratar problemas cardíacos.

“Minha filha, que morreu antes da epidemia, trabalhava cerca de 80 horas por semana. Ainda não existia a Covid”, contou a mãe de Élise, Laurence Feray Marbach, à RFI Brasil. Desde 2015, por lei, a carga máxima de trabalho semanal dos residentes é de 48 horas por semana, mas, na prática, a realidade é bem diferente.

Para alertar sobre as condições de trabalho dos estudantes, os pais da jovem francesa criaram a associação LIPSEIM (Liga para a Saúde dos Estudantes e Residentes em Medicina). A associação recebe com frequência mensagens de estudantes e médicos que, depois de formados, contam as dificuldades do período de residência. Todos são anônimos, já que o medo de represálias é grande. Ser aceito em uma faculdade de Medicina exige anos de estudos e denunciar os abusos significaria colocar um fim precoce à carreira.

Na França, a residência em um hospital tem início sete anos após o baccalauréat, uma prova obrigatória para todos os alunos no fim do Ensino Médio. Ela dura em média de 3 a 7 anos, em função da especialidade escolhida. O país conta com mais de 30 mil médicos residentes – uma mão de obra indispensável para o funcionamento dos hospitais públicos, que há anos lidam com falta de mão de obra e recursos. 

“É um meio muito fechado. Isso tem um grande impacto no futuro dos jovens que escolheram a profissão", relata Laurence. A associação realiza um trabalho de prevenção publicando regularmente documentos sobre os riscos psicossociais ligados ao excesso de carga de trabalho. Seus membros também organizam palestras para os novos estudantes de Medicina, nos anfiteatros das universidades.

Hoje, a única solução em caso de exaustão é pedir uma licença saúde para o médico do trabalho, mas o estudante corre o risco de ter que recuperar os plantões perdidos na volta – e aumentar o nível de cansaço. “O acompanhamento é essencial, porque eles são jovens e evoluem em um universo que não é fácil. Eles enfrentam a doença, a morte e o sofrimento todos os dias. Faz parte da profissão deles. Mas não é porque essa é a profissão deles que eles não devem ter um acompanhamento”, defende a representante da associação.

Com a crise sanitária, a carga de trabalho aumentou ainda mais, principalmente nas unidades de terapia intensiva. “A epidemia revelou a situação do hospital, que já era catastrófica antes da crise”, diz Laurence. “É muito importante porque é uma situação que envolve todos nós. Quando sabemos como funciona o hospital nos bastidores, deveríamos ter medo de ir”, afirma.

Nos hospitais públicos franceses, diz a representante da associação, não há avaliação dos riscos psicossociais aos quais estão expostos os jovens estudantes, dispositivos de prevenção ou uma conscientização coletiva sobre a gravidade do problema da exaustão profissional. Médicos e residentes também não são representados dentro do estabelecimento por um sindicato.

“É um mundo do trabalho totalmente excluído das regras habituais estabelecidas pelo Direito”, resume Laurence Feray Marbach. Além do excesso de tarefas, lembra, há também denúncias de assédio moral, ou até mesmo sexual. “O assédio é um delito penal, que deve ser punido”, lembra.

Gaetan Casanova, presidente do sindicato que representa os médicos-residentes na França.
Gaetan Casanova, presidente do sindicato que representa os médicos-residentes na França. © Foto: Divulgação

Erros médicos

No dia 17 de abril, cerca de 40 pessoas se reuniram em frente à sede do Ministério da Saúde, em Paris, para homenagear os cinco residentes que se suicidaram desde o início do ano. A manifestação foi organizada pela ISNI (Intersyndicale Nationale des Internes), que representa os médicos residentes na França.

O presidente da ISNI, Gaetan Casanova, conta que um estudo feito pela entidade em 2017 revelou o nível de stress dos estudantes de Medicina em residência médica. Os dados revelam que 23,7% já pensaram em suicídio, 28% tiveram episódios depressivos e, 66%, transtornos de ansiedade.

O excesso de trabalho atinge todas as categorias e chega a níveis desumanos em áreas como a neurocirurgia, onde a carga horária média de 70 horas semanais é habitual. Uma das consequências é o aumento dos erros médicos. “É inimaginável, trabalhando 80 semanais, e fazendo plantões de 24 horas várias vezes durante a semana, que podemos dar ao paciente a atenção necessária e sem cometer erros. Claro que cometemos erros e temos medo de cometer erros”, diz o médico.

A dependência total à chefia do setor onde atuam os estudantes, também é um fator que contribui para a sobrecarga mental dos estudantes. Segundo Casanova, o médico que dirige um serviço dentro dos hospitais tem poder de “vida e morte” sobre os residentes. Situações de assédio moral são comuns e os jovens estudantes preferem se calar a arriscar seu futuro.

Outro empecilho é a impossibilidade de mudar de especialidade no meio do curso: se o estudante escolheu ser cardiologista, por exemplo, terá que continuar na área ou deixar a Medicina. “Conversei há pouco com uma estudante que decidiu largar tudo para criar cabras. Tenho certeza de que essas cabras serão muito bem cuidadas”, ironiza.

O residente francês atuou na UTI dos hospitais Saint-Antoine e Cochin, em Paris, durante a primeira onda da epidemia. Ele trabalhou sem parar dezenas de horas por semana, como muitos de seus colegas residentes. Uma delas, obesa e asmática, foi obrigada a continuar no setor de pacientes Covid-19 pela chefia. Contaminada, a jovem acabou sendo hospitalizada.

O sindicato agora prepara uma nova pesquisa sobre a carga de trabalho dos estudantes. Além do suicídio, há também o problema da dependência química: muitos deles, para manter o ritmo, são obrigados a tomar medicamentos.  “Acredito que isso já tenha acontecido com praticamente todos: tomar corticoides depois do plantão para conseguir chegar em casa. Eu me lembro bem do último plantão antes da epidemia, na UTI. Depois de trabalhar 24 horas, como de costume, sem nenhum descanso, fui enviado para um novo hospital. Eu comecei às 8h na segunda-feira e terminei por volta das 16h, sem parar, na terça-feira, sem dormir”, relata. “Que fique claro: isso mata os pacientes. ”

Corporativismo

Sem medir palavras, Casanova critica o corporativismo da profissão, onde erros são omitidos constantemente. “Já acompanhei cirurgias em que o médico esqueceu compressas dentro da barriga do paciente, que quase morreu depois de ter uma infecção severa. O paciente nunca tomará conhecimento do caso. Vão dizer que teve uma complicação severa”, denuncia. “É um mundo onde os erros são acobertados. Não quero acobertar erros. Quero evitá-los”.

O representante do Sindicato também critica a falta de ação do governo francês. Segundo ele, o Ministério da Saúde se comprometeu a avaliar a situação da sobrecarga de trabalho, mas existem obstáculos. Um deles é sobre como contar as horas trabalhadas. Diante do impasse, o representante não descarta convocar uma paralisação. "Falo de greve, de ir embora do plantão.”

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