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Festival de Avignon: 'A Noiva e o Boa Noite Cinderela', ou como explodir no próprio corpo as fronteiras do teatro

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Cadela Força. O nome da trilogia cujo primeiro ato, - A Noiva e o Boa Noite Cinderela, Carolina Bianchi estreia no Festival de Avignon nesta quinta-feira (6), convoca em cena o testemunho de vítimas da violência sexual, como a performer italiana Pippa Bacca. Aguardada com muita expectativa pelo público francês, a dramaturga brasileira é considerada por Tiago Rodrigues, diretor do festival, uma das criadoras mais corajosas de sua geração, rompendo no próprio corpo os limites do teatro. 

A companhia Cara de Cavalo, dirigida por Carolina Bianchi, em "A Noiva ou Boa Noite Cinderela", primeiro ato da trilogia Cadela Força, que estreia nesta quinta-feira (6) no Festival de Avignon.
A companhia Cara de Cavalo, dirigida por Carolina Bianchi, em "A Noiva ou Boa Noite Cinderela", primeiro ato da trilogia Cadela Força, que estreia nesta quinta-feira (6) no Festival de Avignon. © Cristophe Raynaud de Lage
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Márcia Bechara, enviada especial da RFI a Avignon

Carolina Bianchi recebeu a reportagem da RFI Brasil direto do Festival de Avignon, no sul da França.

RFI: Antes de entrar nas referências de "A Noiva e o Boa noite, Cinderela", queria saber mais sobre o dispositivo mesmo do espetáculo, no sentido da radicalidade da sua pesquisa. Você prepara e toma em cena o Boa noite Cinderela, ou a "droga do estuprador" como nós a conhecemos, e isso vai além do teatro, para além do discurso, porque afeta diretamente o seu próprio corpo.

Carolina Bianchi: Eu acho que esse é um dos pontos nevrálgicos deste trabalho. Para mim era importante entender como, dentro dessa peça, as ferramentas da performance-arte e do teatro poderiam sustentar essa conversa, sobre esse tipo de assunto, violência sexual, violência de gênero. A escolha de se fazer uma performance também vem do fato de eu iniciar a peça falando da história de uma performance italiana, Pippa Bacca, que foi estuprada e assassinada enquanto fazia exatamente uma performance. Então, para mim também havia esse gesto diretivo de precisar me colocar numa situação vulnerável, de precisar também fazer um gesto numa direção performativa, construindo esse rasgo do real ali dentro do espaço teatral. Trata-se de uma peça de teatro, uma encenação teatral que contém essa performance, que leva a coisa para um outro lugar, quase criando esse buraco no tempo onde se acessa um acontecimento que não se pode ignorar.

RFI: Você teve o cuidado de não tratar as mulheres que sofreram violência sexual apenas do ponto de vista da vítima, para que elas pudessem existir também como sujeitos, donas de suas narrativas. Eu queria entender como que isso se traduz em termos de linguagem teatral.

Carolina Bianchi: Eu sinto que tem uma questão para mim que vem dessa grande pesquisa que iniciou a trilogia Cadela Força. Eu faço a relação com o Inferno do Dante Aligheri, é o começo de uma jornada por esse inferno que é olhar para essas histórias. Esse primeiro capítulo teve essa imensa pesquisa para inserir histórias muito diversas, como os assassinatos de mulheres em Cidade Juárez, no México, ao longo de quase 15 anos, ininterruptamente, sem encontrar nenhuma resposta sobre as motivações dessas mortes. Então, colocar isso em conexão com a história da [performer italiana, assassinada em 2008] Pippa Bacca, em conexão com outras histórias, inclusive as nossas, é muito importante. Acredito que o teatro é esse espaço de coletivização das questões. Então, como essas histórias aparecem no teatro? Elas aparecem amparadas por um coletivo, como o Cara de Cavalo. Eu não faço essa peça sozinha. Existe aí um coletivo que também está tentando segurar esse rojão junto comigo, isso é uma coisa muito importante, de como o teatro tenta suportar essa história e, sobretudo, para sair um pouco desse âmbito das histórias pessoais. Trata-se de uma história coletiva que pertence a todo mundo.

Carolina Bianchi recebeu a RFI Brasil no Festival de Avignon, onde estreia "A Noiva e o Bom Dia Cinderela".
Carolina Bianchi recebeu a RFI Brasil no Festival de Avignon, onde estreia "A Noiva e o Bom Dia Cinderela". © Cyrill Etienne

RFI: Somos brasileiras e vivemos num país onde a violência de gênero existe de maneira contundente. De que forma isso incide em você enquanto criadora?

Carolina Bianchi: Eu acho que em primeiro lugar - e eu coloco isso no próprio texto da peça - o fato de vir do Brasil, que é um dos lugares que tem os maiores índices de violação no mundo, já diz tudo, né? Como a gente cresce, como a gente é educada, os medos sempre presentes. Parece que a nossa vida é sempre tentar evitar o pior. Ou tentar superar o pior, quando ele acontece. Então, eu sinto que isso é uma constante do reconhecimento de que isso faz parte da nossa existência, da nossa história enquanto mulher. Eu sinto como se fosse um jogo, onde tudo são táticas de sobrevivência. Narrar é uma delas.

RFI: Vamos falar um pouquinho da "Noiva", esse arquétipo tão poderoso no imaginário geral. Você trabalha a partir de uma pesquisa com a história trágica da Pippa Bacca, que morreu assassinada enquanto performava vestida de noiva. Gostaria que você falasse um pouco dela, mas também das referências múltiplas, dessa multitude de vozes que te fez criar esse espetáculo junto com a Cia Cara de Cavalo. 

Carolina Bianchi: A história da Pippa já me acompanhava desde a pesquisa do meu espetáculo anterior no Brasil, "O tremor magnífico", que eu estreei logo antes da pandemia começar, em 2020. Era um espetáculo em que eu já estava olhando para questões de violência e estava pesquisando muito a obra de uma outra performer, a [cubana] Ana Mendieta, que também teve um final terrível em sua vida, caindo do 34º quarto andar de um prédio, e tem essa questão de que ela teria sido assassinada pelo seu companheiro da época, que também era um artista. Comecei a pesquisar outras performers e fui parar na história da Pippa Bacca, fiquei muito obcecada, porque me parecia ter muitas camadas, inclusive a questão dela estar vestida de noiva, e pegando carona, durante uma performance, que consistia nisso: ela e uma outra artista, juntas, pegariam carona em países que recentemente viveram situações de guerra e tinha o pressuposto do discurso dessa performance, que era provar que nesses lugares é possível ter a bondade humana. Então tem uma coisa aí também dessa ideia da noiva, da pureza. Para mim, existe um gesto super radical de uma performance que sai dos lugares fechados, protegidos. E é muito mais fácil encontrar homens no mundo da história da performance que conseguiram fazer grandes gestos assim, nos espaços fora das galerias. 

RFI: Existe então também uma recuperação da historiografia dessas mulheres performers. 

Carolina Bianchi: Sim, completamente, sou muito apaixonada por criar conexões entre coisas que aconteceram em tempos completamente diferentes. Existe o tempo todo essa tentativa de borrar essa linha do tempo. Em aproximar coisas  e pessoas que, a princípio, não teriam conexões tão nítidas, tão óbvias. Entender como essas figuras estão olhando para questões de violência, o que acontece quando elas estão marcando o corpo delas, o que a Marina Abramovic está fazendo quando ela propõe isso, o que elas estão fazendo quando rola esse envolvimento do corpo dessa maneira tão radical, o que é essa implicação? Eu venho do teatro, não da performance-arte, então, talvez, tenha algo aqui que eu preciso aprender, inclusive como colocar em xeque qual é o meu papel na cena. Eu não posso pedir para uma das pessoas do elenco para tomar um Boa noite, Cinderela, esse é um risco que eu tenho que correr, uma vez que sou a diretora da peça. Então, aí começa essa conversa sobre limites, de até onde o teatro vai até onde a performance vai, com essas outras artistas, a Tânia Bruguera, Regina José Galindo. Inclusive outras pessoas da da literatura, como Roberto Bolaño, no [livro] "2666". Então eu vou conectando muitas coisas nesse trabalho. 

RFI: Como é para você sair do teatro independente no Brasil e estrear numa das maiores vitrines mundiais das artes cênicas? O que esperar desse encontro com o público europeu?

Carolina Bianchi: É tão louco, tão bonito, tão incrível ver que, junto com meu coletivo, nós pela primeira vez, ao longo de uma história de quase 10 anos, estamos trabalhando com dignidade. E eu posso dizer isso tranquilamente, somos um coletivo que vem mesmo desse cenário independente. Eu já fiz peça com dinheiro de crowdfunding: "Lobo" por exemplo foi feita assim. "O tremor magnífico" foi feito com empréstimo do banco. Estou experimentando junto com com o meu grupo essa sensação de de poder trabalhar em boas condições, e isso é uma coisa muito linda, além de poder vir acompanhada do coletivo com quem venho trabalhado nesses 10 anos. 

RFI:  Sempre acho que quando o artista, um criador, começa a desenhar um projeto, existe um lugar que dói, não é? De onde fala a sua ferida, onde ela está aberta, de que lugar? 

Carolina Bianchi: Eu tenho uma frase em "O tremor magnífico" que eu repito nessa peça que é "o lugar da ferida". Dói conseguir olhar para a memória, para as marcas da memória de uma violência sexual, depois de muito tempo. E tentar encontrar linguagem para falar sobre isso. O depoimento, nesse caso, não era o bastante. Ele precisava encontrar invenção. Ele precisava encontrar fabulação. Ele precisava encontrar uma linguagem, que é executada coletivamente. Para conseguir chegar, para conseguir encontrar talvez uma possibilidade de eco em algum lugar. 

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