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O Mundo Agora

Sentimento crônico de medo na Europa é chave de eleições polarizadas

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Cansaço e medo: estes são dois sentimentos em destaque no cenário europeu de hoje. Há o cansaço e o medo dos mais de dois anos de pandemia. Ela afetou não apenas o cotidiano de norte a sul, de leste a oeste do continente; também foi vítima dela a autoestima coletiva nele.

O sentimento crônico de medo foi um dos elementos determinantes do comportamento do eleitorado francês na última eleição presidencial.
O sentimento crônico de medo foi um dos elementos determinantes do comportamento do eleitorado francês na última eleição presidencial. © REUTERS - JOHANNA GERON
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Flávio Aguiar, analista político

A pandemia começou na China, mas ao contrário da famigerada gripe espanhola, do começo do século XX, que viajava de barco e trem, a da Covid-19 viajou de avião. Também, ao contrário daquela gripe, cujo noticiário “viajava” nas páginas de jornais, a Covid se espalhou meteoricamente pela internet, pela televisão, pelo rádio, pelas redes sociais.

Pela sua situação geográfica, entre a América, a África e a Ásia, englobando até a distante Oceania, a Europa tornou-se o “hub” da pandemia, o ponto de convergência e conexão central de onde, pelas linhas aéreas, ela se disseminou pelo mundo.

A somar-se a este cansaço e medo endêmicos diante da doença, vieram agora o cansaço e o medo diante da Guerra na Ucrânia, que de momento parece não ter horizonte nem fim à vista.

A situação econômica já entrara complicada em 2022, e desde o começo do conflito só fez piorar. A inflação galopa solta pelo continente, atingindo, recentemente, uma estimativa média de 7,5% anuais, uma catástrofe para um continente que até há pouco se orgulhava de ter um índice próximo do zero.

A cifra, no entanto, é ao mesmo tempo reveladora e enganadora, porque o índice inflacionário se distribui desigualmente, conforme os produtos que engloba. Na espiral inflacionária despontam os preços dos alimentos e da energia, com seus reflexos nos transportes e outras áreas do cotidiano, como remédios.

Com isso, agigantaram-se os variados medos que já estavam instalados nos corações e mentes: medo de perder o status social, medo de não fechar as contas no fim do mês, medo de perder o emprego, medo de comprometer o futuro dos filhos, medo de perder a moradia e de ter que “ir morar mais longe”, seja lá do que for. Numa palavra, acentuou-se a sensação de desamparo, sobretudo para quem já se sentia desamparado, fora do sistema de proteção social no sentido amplo da palavra, cada vez mais reduzido.

Medo e a eleição francesa

Segundo institutos de pesquisa, entre eles o conceituado Instituto Francês de Opinião Pública (Ifop), fundado em 1938, este sentimento crônico de medo foi um dos elementos determinantes do comportamento do eleitorado francês na última presidencial.

O desempenho do presidente reeleito Emmanuel Macron foi positivamente decisivo junto ao eleitorado mais velho, de 65 anos ou mais, e o mais jovem, entre 18 e 24 anos. Qual a característica comum destes dois segmentos tão distantes na idade? Estão fora do mercado de trabalho, seja porque nele não entraram, seja porque nele já passaram.

Já na faixa etária entre os dois grupos, majoritariamente de pessoas imersas no mercado de trabalho, o desempenho de Macron foi bem mais próximo do de sua rival da extrema direita, Marine Le Pen. Nos setores menos favorecidos, aqueles que ganham menos de 900 euros por mês, a vitória foi de Le Pen, bem como entre os eleitores que não têm sequer um diploma de ensino médio.

Macron venceu nas grandes cidades afluentes, como Paris, Marselha, Toulouse, Nantes, Estrasburgo; já Le Pen venceu nas pequenas cidades distantes dos grandes centros, nas zonas rurais, e em regiões e bairros antes industriais e hoje em crise de abandono e desemprego.

Votos anti-Macron e anti-le Pen

As pesquisas também detectaram uma migração significativa de votos dados no primeiro turno ao candidato de esquerda, Jean-Luc Mélenchon, para Marine Le Pen, no segundo. Ou seja: isto significa que, assim como houve um voto útil anti-Le Pen, que favoreceu Macron, também houve um voto útil anti-Macron, que favoreceu o crescimento da candidata da extrema direita. No segundo turno uma parte do eleitorado identificou Macron como o candidato dos mais ricos e dos abonados.

Segundo Jérôme Fourquet, diretor do Ifop francês, em artigo publicado no jornal inglês The Guardian em 28 de abril, este comportamento dos “desamparados” foi análogo ao observado no plebiscito sobre a saída do Reino Unido da União Europeia, em 2016, quando eles preferiram o “protecionismo” identificado com a direita, que defendia a ruptura, ou mesmo ao da eleição presidencial norte-americana no mesmo ano, que levou o arquiconservador Donald Trump à Casa Branca, em Washington.

Esta tendência mereceria ser também pesquisada em outros colégios eleitorais onde a extrema direita vem fazendo ou fez progressos, como na Espanha, em Portugal, ou mesmo na Itália e na mais próspera Alemanha.

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