Análise: em meio a disputa de versões, guerra na Ucrânia tem consequências que abalarão o mundo
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A invasão russa da Ucrânia deflagrou uma guerra de poucas certezas e incontáveis incertezas.
Flavio Aguiar, analista político
Entre as certezas contam-se:
1. Seja qual for o resultado, a Ucrânia sairá devastada da guerra. 10% de sua população já deixou o país, mais de 4 milhões de pessoas, segundo a ONU.
2. A economia mundial estará em pior estado do que antes da guerra.
3. O preço dos alimentos subirá em escala mundial: haverá aumento da fome e das doenças ligadas à desnutrição.
4. Em todos os lados, a retórica pró-guerra terá ganhado pontos, em detrimento das campanhas pacifistas e da diplomacia
As incertezas começam com o próprio desenrolar da guerra, nos campos de batalha. O número de fontes seguras sobre o que de fato está acontecendo é pequeno, e o de fontes independentes é praticamente nulo. Multiplicam-se as informações baseadas no que autoridades ucranianas disseram ou desdisseram e no que Vladimir Putin anuncia ou nega.
Na frente econômica da guerra, a situação não é diferente. Por exemplo: a confusa situação do fornecimento do gás russo para a Europa.
Putin anunciou que a partir de 1° de abril os países “hostis” à Rússia deveriam pagar em rublos pelo gás que comprarem. Este anúncio foi seguido por uma série de “não é bem assim”… o que neutralizaria o risco de uma pane energética na Europa, pelo menos no curto e no médio prazos.
Se a medida fosse seguida à risca, os países compradores teriam de abrir contas em rublos no Gazprombank, um dos maiores bancos da Rússia, uma empresa privada subsidiária da estatal Gazprom, que faz a intermediação dos pagamentos pelo gás fornecido.
Entretanto, no mercado financeiro já se fala num autêntico “jeitinho” para driblar a dificuldade. Os compradores poderiam continuar pagando em dólar ou em euro; o Gazprombank, privado, converteria as quantias recebidas em rublos; e assim a estatal Gazprom contabilizaria os recebimentos em moeda russa… Tudo ficaria como dantes no quartel de Abrantes, como diz o ditado brasileiro.
Se esta é a solução posta em prática? Mais uma incerteza para averiguação no futuro.
A certeza é que o gás russo é vital para todas as partes envolvidas. Na Europa, a redução da dependência do gás russo levaria pelo menos dois anos para começar a ser implementada de fato. Na Alemanha, uma interrupção brusca desse fornecimento mergulharia o país numa recessão de grandes proporções. E o país já enfrenta uma inflação que ameaça chegar a 7% anuais, um desastre para quem se orgulhava da inflação perto de zero de poucos anos atrás.
Para a Rússia, a interrupção do fornecimento provocaria um desastre financeiro também de grandes proporções. A Gazprom é responsável por 10% do PIB russo, que em 2020, embora em retração, foi de quase 1 trilhão e meio de dólares, segundo dados do Banco Mundial.
A Europa recebe 30% das exportações russas de gás, e isto representa 40% da renda da Gazprom, através da subsidiária Gazprom Export. A Rússia fornece gás para 25 países europeus; destes, nove dependem exclusivamente do fornecimento russo, incluindo países cujos governos praticam uma retórica pesada anti-Moscou, como a Letônia, a Lituânia e a Estônia. Outros seis têm mais de 50% de seu fornecimento dependente da Rússia, entre eles a Polônia, a Hungria, a Áustria e a Turquia.
Os contratos, em média, têm uma duração de 25 anos. Em 2014, Putin e o presidente chinês Xi Jinping assinaram um contrato de 30 anos para o fornecimento de gás à China, no valor de 400 bilhões de dólares.
Tudo isto ajuda a entender por que, na devastada Ucrânia, os gasodutos que levam o produto russo liquefeito para a Europa continuam intactos, prova de que as transações econômicas e os executivos que as implementam têm razões mais poderosas do que as da própria guerra.
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