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Linha Direta

Corte IDH prepara decisão sobre caso das comunidades quilombolas de Alcântara

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Recomeça nesta quinta-feira (27) o julgamento na Corte Interamericana de Direitos Humanos, no Chile, que delibera sobre o caso Alcântara (MA). O Brasil é denunciado por prováveis violações de direitos humanos de comunidades quilombolas atingidas pela instalação do Centro de Lançamento nos anos 1980.

Reprodução da transmissão ao vivo do segundo dia de julgamento na Corte Interamericana de Direitos Humanos, no Chile, sobre o caso das comunidades quilombolas que sofreram expropriações de cerca de 80 mil hectares em Alcântara (MA).
Reprodução da transmissão ao vivo do segundo dia de julgamento na Corte Interamericana de Direitos Humanos, no Chile, sobre o caso das comunidades quilombolas que sofreram expropriações de cerca de 80 mil hectares em Alcântara (MA). © CIDH/Facebook
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Camilla Viegas, correspondente da RFI em Santiago

Quase quatro décadas depois, comunidades quilombolas do Maranhão se preparam para uma decisão que pode representar uma reparação histórica, mas o tribunal que julgará esta causa não está no Maranhão, nem mesmo no Brasil, mas sim em Santiago do Chile. Trata-se da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), que iniciou na quarta-feira (26) um julgamento para analisar o caso dessas comunidades maranhenses que sofreram expropriações de cerca de 80 mil hectares, com o objetivo de ceder espaço para a construção da base de lançamento de foguetes da Força Aérea Brasileira (FAB).

Durante quatro horas de audiência ontem, os juízes e juízas da Corte IDH ouviram os argumentos de representantes das comunidades descendentes de quilombolas e de povos indígenas atingidos pela decisão do Estado brasileiro. Na década de 1980, em plena ditadura militar no Brasil, a desapropriação e remoção de comunidades que viviam do extrativismo e da pesca na região foi levada a cabo no governo do general João Figueiredo, último presidente militar. Membros de 152 comunidades foram colocados em áreas improdutivas e distantes do mar, o que influenciou diretamente na subsistência das famílias que inclusive passaram fome, conforme o relato de Maria Luzia Silva Diniz, de 68 anos, uma das moradoras que foi remanejada e que foi ouvida pela Corte.

“Tínhamos uma vida feliz”, lembrou Maria Luzia. “Foi muito difícil aceitar a mudança para outro lugar. Não concordamos em nada e não foi satisfatório para ninguém. Foi triste ver pessoas chorando e desesperadas sem saber para onde iam. Trouxeram a gente para as agrovilas, passamos fome, ganhamos título de miseráveis, porque a gente tinha um patrimônio muito rico e, de repente, perdemos tudo”, disse ela, emocionada. Maria Luiza expôs também que as comunidades ficaram sem acesso à educação e saúde, direitos fundamentais que lhes foram negados.

Um depoimento semelhante foi dado por Inaldo Faustino Silva Diniz, integrante de uma das últimas famílias removidas em 1988. “Tenho ótimas lembranças [do lugar de origem] e às vezes sinto como se nunca tivesse saído de lá [...] Tive uma infância muito boa, com tudo que precisava e que tinha direito", disse ele, assegurando que saiu do lugar "por causa de um projeto de expropriação do Estado brasileiro", ao qual "ele não tinha alternativa”. “Foi muito doloroso porque nunca tínhamos saído de lá. Foi a primeira vez que nos encontramos naquela situação em que os militares nos disseram que tínhamos que sair", disse ele.

A Corte Interamericana é um organismo independente que está associado à Organização dos Estados Americanos e seu objetivo é aplicar a Convenção Americana de Direitos Humanos, a qual o Brasil aderiu em 1992. Esse tribunal é considerado uma das principais instâncias regionais para a proteção dos direitos humanos.

Escolha de Alcântara não foi à toa

O projeto do Centro de Lançamento de Alcântara começou a ser elaborado ainda na década de 1970. Durante sua construção, já na década de 1980, foram desapropriadas 312 famílias que compõem o território étnico de Alcântara. A área fica a 100 km de São Luís, capital do Maranhão, e possui uma localização privilegiada para o lançamento de foguetes e satélites por estar em uma península. A base foi inaugurada em 1983 e a escolha de Alcântara não foi à toa: por estar próxima à linha do Equador, os lançamentos na base significam uma economia de até 30% de combustível.

Parte dos 52 mil hectares necessários para a construção da Base de Alcântara eram habitados por 32 comunidades quilombolas que foram realojadas em sete “agrovilas” e o terreno da base foi considerado de "utilidade pública”, segundo a CIDH. As agrovilas foram compostas por várias famílias de comunidades diferentes, o que contribuiu para conflitos territoriais que seguem até hoje.

Além disso, a maioria das terras do local eram improdutivas, de acordo com relatos divulgados em cartilha elaborada pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. A pesca se tornou uma atividade distante e quase inviável e os relatos divulgados também informam que os problemas de saúde eram frequentes, faltava assistência médica e o acesso à educação era precário.

Alcântara tem hoje 22 mil habitantes e é o município que tem o maior número de comunidades quilombolas do país, com mais de 17 mil pessoas distribuídas em quase 200 comunidades.

O caso na Corte IDH

A denúncia contra o Brasil foi apresentada em 2001 por movimentos sociais, sindicatos e organizações de defesa dos direitos humanos perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e o caso foi aceito em 2006, mas foi levado à Corte apenas em janeiro de 2022. 

A acusação foi apresentada por diversos grupos: Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe), organização Justiça Global, Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras do Estado do Maranhão (Fetaema), Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alcântara (STTR) e Defensoria Pública da União (DPU). 

Depois de admitida a denúncia e em duas ocasiões, a Comissão recomendou ao Estado brasileiro que fosse feita a titulação do território, ou seja, a concessão do direito à posse de terra às comunidades quilombolas. O órgão também recomendou que fosse feita uma reparação financeira aos removidos e um pedido de desculpas públicas. 

Essas recomendações foram baseadas no direito das comunidades remanescentes de quilombos às terras por elas ocupadas garantido pela Constituição Federal de 1988, no artigo 68. Esse artigo, por sua vez, foi regulamentado pelo Decreto Presidencial 4.887/2003, que atribuiu ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) a responsabilidade pela identificação, demarcação e titulação dos territórios quilombolas. Além disso, a Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) também garante o direito fundiário dos povos originários a suas terras.

Em 2008, o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação, elaborado pelo Incra, apontou mais de 78 mil hectares que deveriam ser titulados em favor das comunidades quilombolas compostas por cerca de 3.350 famílias.

Foi a partir desse não cumprimento das recomendações por parte do Estado que o caso chegou à Corte IDH. “A nossa principal solicitação é que o Estado brasileiro realize a titulação coletiva dos territórios das comunidades quilombolas de Alcântara, porque a partir da titulação do território é que nós vamos ter condições de desdobrar esse pedido em outras agendas para ativação de políticas públicas e dignidade dessas comunidades”, disse Danilo Serejo, quilombola de Alcântara e membro do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial.

Segundo dia de audiência

Nesta quinta-feira (27), o segundo dia de julgamento começa às 9h (horário local) no Tribunal Constitucional do Chile, no centro de Santiago. Serão ouvidas outras declarações e as alegações finais dos representantes das vítimas e do Estado brasileiro.

Sobre o julgamento inédito de uma denúncia relacionada aos direitos humanos de comunidades quilombolas, Daniela Fichino, diretora adjunta da organização Justiça Global, explica que “essa será uma importante etapa para a responsabilização do Estado brasileiro em um cenário de profundo racismo estrutural”. Em entrevista à RFI, ela se mostra esperançosa com a decisão da Corte: “Estamos muito otimistas de que esse resultado possa enfim significar um passo para o reconhecimento e efetivação dos direitos das comunidades de Alcântara e também um passo na efetivação de critérios de justiça para todas as comunidades quilombolas brasileiras”, finaliza.

Hoje os representantes do Estado brasileiro pedem desculpas públicas aos povos quilombolas. Integrante da comitiva do governo brasileiro que acompanha o julgamento do caso em Santiago, a secretária-executiva do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, Rita Oliveira, explica que “todas as injustiças que dizem respeito a algum déficit democrático estão sendo observadas em relação a todas as comunidades atingidas. Nós estamos imbuídos de uma política de direitos humanos que de fato trabalhe com memória, verdade, justiça e reparação”.

Segundo ela, diálogos em prol do reconhecimento de responsabilidades articulados pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) e pelo Ministério da Igualdade Racial (MIR) resultaram em um subsídio de defesa de uma postura responsiva “de respeito às comunidades e às suas demandas, mas que também dialoga com a necessidade de avanço tecnológico da região, que possa primar pelo diálogo e que a gente possa construir daqui para frente alternativas sustentáveis para a região”.

Para o professor André de Carvalho Ramos, Doutor em Direito Internacional e acadêmico da Faculdade de Direito da USP, a posição do Estado brasileiro deve ser celebrada. “Há um simbolismo por trás desse reconhecimento. O reconhecimento mostra compromisso, mostra que o Estado brasileiro, além de ratificar os tratados de direitos humanos, acata a chamada interpretação internacionalista desses direitos. [...] Não basta que os estados, como eu coloco nas minhas obras, ratifiquem os tratados de direitos humanos e depois continuem a não implementá-los. [...] Então, nesse sentido, entendo que essa responsabilidade, mesmo que parcial, gera um resultado que é justamente a aceitação daquilo que vem depois, que é justamente reparar os danos causados”, explica o acadêmico. 

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