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Rendez-vous cultural

Artistas reencontram o público após 7 meses de restrições na França

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Paris, mais do que nunca, parece uma festa. O epíteto da cidade-luz descrita por Ernest Hemingway no fim dos anos 1950 pode ser revisitado nesta primavera: a França reabre as cortinas depois de 203 dias de paralisação. Teatros, cinemas e museus voltam a abrir as portas em todo o território, mas seguindo um protocolo sanitário rígido: uso obrigatório da máscara e ocupação de apenas 30% da capacidade dos teatros. Os artistas voltam à cena com a consciência de que os bastidores da luta dos trabalhadores da cultura está longe de terminar.

Artistas franceses e brasileiros contam como se prepararam para a reabertura dos lugares de Cultura na França, em 19 de maio.
Artistas franceses e brasileiros contam como se prepararam para a reabertura dos lugares de Cultura na França, em 19 de maio. © Fotomontagem RFI/Adriana de Freitas
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Para a atriz Clémentine Aubry, do coletivo Mixeratum Ergo Sum, organizador do Festival de Teatro dos Porões de Bordeaux, já não era sem tempo esse reencontro com a plateia. "Tudo isso não existiria se não houvesse o público e os habitantes da cidade, que acolhem os artistas em suas casas. O que nos motivou imensamente a não desistir e a preparar algo para a reabertura foi o fato de sentir que, do lado dos donos das casas onde nos apresentamos, havia também essa vontade, e essa energia que dizia: vamos lá, nós acreditamos, vai dar certo, estamos com vocês", afirma Aubry, que este ano decidiu extrapolar o espaço dos porões e invade, com sua trupe, os jardins dos moradores de Bordeaux, no sudeste da França.

Clémentine Aubry, do coletivo Mixeratum Ergo Sum, organizadora do Festival de Teatro dos Porões de Bordeaux.
Clémentine Aubry, do coletivo Mixeratum Ergo Sum, organizadora do Festival de Teatro dos Porões de Bordeaux. © DR

"Sentíamos que havia essa vontade mútua com a plateia de nos revermos, uma energia muito agradável. Tenho muita vontade de me apresentar. Estou ansiosa, porque já faz muito tempo, me sinto um pouco enferrujada, mas não vejo a hora de entrar em cena", comemora. Nascido na cidade de Besançon (leste), o Festival de Teatro dos Porões tem como princípio atuar no subterrâneo das casas dos franceses. "Nosso coletivo nasceu neste estado de espírito, que ocupa espaços fora dos teatros tradicionais, o que não deixa de ser interessante como reflexão neste contexto da pandemia", lembra a atriz. 

"Ao receberem os artistas, os próprios moradores reacendem a vida cultural de suas municipalidades, um gesto que não é inconsequente, e que certamente é precioso", avalia a artista. "Não foi fácil", conta. "Frequentemente, durante a crise sanitária, não sabíamos ao certo o que iria acontecer, as informações não eram claras. Fomos obrigados a adiar o festival, mas agora podemos reencenar porque, além de tudo, o fazemos em espaços pequenos, com menos espectadores, é mais fácil de controlar as regras de higiene e contato", afirma Aubry.

Já o coreógrafo e bailarino brasileiro Calixto Neto, radicado na França, lembra da última vez que se apresentou ao público, no início da pandemia: "Foi em Madri, na Espanha. Foi bem estranho, era um teatro muito grande, com 800 lugares, balcão, com a sala ocupada com apenas um quarto de sua capacidade, com as pessoas muito afastadas umas das outras, todas com máscaras. Foi uma medida necessária, para que os espetáculos continuassem a existir. Na Espanha foram estabelecidos protocolos de segurança para que os teatros não fossem fechados", relata Neto. 

Calixto Neto apresenta o espetáculo "oh!rage" no CnD de Paris.
Calixto Neto apresenta o espetáculo "oh!rage" no CnD de Paris. © Marc Domage

"Sinto que existe uma ansiedade para voltar aos teatros, para ver peças, ter contato com as artes vivas, porque ninguém mais aguenta estar na frente da tela do computador. Mas há também a dificuldade de se dar conta que passamos um ano em modo de restrição de interações sociais. Estou muito curioso para entender como vai ser essa mediação com o público e saber como conseguiremos restabelecer essa relação  com as pessoas", avalia o bailarino.

A atriz francesa Mélanie Martinez-Llense, que retoma uma programação com três espetáculos depois da pandemia, afirma que se sentiu privilegiada durante os confinamentos. "O lockdown me fez compreender que a pandemia foi uma operadora de desigualdades sociais, me fez perceber o quanto sou bem branca e bem burguesa", atesta a artista e fundadora da Cia Play, que volta à cena com o elogiado "Berck Plage", e com o novo trabalho, "Boulevard do Queer", no Les Plateaux Sauvages, em Paris. Antes disso, Mélanie entra em cena na companhia de Rebecca Chaillon com uma performance no festival Subsistances de Lyon (leste).

"Justamente, Rebecca questionou o diretor do festival em Lyon se deveríamos voltar a encenar no meio deste contexto de ocupação dos teatros, uma vez que não obtivemos o que desejávamos, por exemplo, em relação à anulação do projeto de reforma do seguro desemprego", conta a atriz. "Não é simples para nós voltarmos à cena neste contexto, porque será complicado para os intermitentes do espetáculo e para aqueles que não possuem esse direito, uma vez que o seguro desemprego é uma catástrofe. Politicamente nos questionamos se é necessário continuar a ocupar os teatros. De qualquer forma, é preciso que sejamos muitos a desejar essa mudança", afirma Mélanie Martinez-Llense.

A artista se posiciona em relação aos privilégios durante a pandemia. "Fiquei bastante protegida, pude ficar dentro de casa, não tive que sair para trabalhar, ao contrário das pessoas que moram no departamento 93, para onde me mudei recentemente. É um abismo social, o 93 foi uma das regiões mais atingidas pela pandemia. Eu devo dizer que o confinamento me permitiu até escrever, me concentrar. Mas não concordo com a escritora Leila Slimani quando ela diz no Le Monde que a quarentena foi uma benção, jamais poderia dizer isso publicamente enquanto tem gente morrendo de fome, e outras que salvam vidas", afirma a atriz e diretora francesa.

O performer brasileiro Pol Pi volta à cena com nada menos do que cinco espetáculos neste reencontro com o público na França: o novo trabalho "daté·é·s", que estreou para profissionais do Centro Nacional de Dança de Paris (CnD); como intérprete em "Moving alternatives", no festival Latitudes Contemporâneas de Rubaix; "Me too, Galatée", no mesmo festival; "ECCE (H)OMO", no festival Rebish Chaud, em Toulouse, e na nova criação "Schönheit ist Nebensache ou la beauté s’avère accessoire", em Romainville, nos arredores de Paris.

 Apesar da profusão criativa, ele ressalta a importância do movimento político de ocupação dos teatros contra a precariedade dos artistas, durante a pandemia. "É um movimento muito importante que aconteceu, e que está acontecendo aqui na França. Eu participei das primeiras assembleias em Toulouse, onde moro. O teatro foi desocupado semana passada e as pessoas foram expulsas provavelmente por causa da reabertura cultural", diz. "Essa é uma discussão complicada. O movimento sempre teve muito medo desse momento, desde o começo. Em Toulouse, as questões foram muito em torno do quanto a reabertura dos teatros deveria estar na pauta ou não das reivindicações da ocupação", lembra Pol Pi.

"Foi difícil colocar isso em pauta justamente porque a primeira bandeira do movimento era o fim da reforma do seguro desemprego. Esse novo projeto de lei do governo francês é realmente muito injusto e precariza muita gente", contemporiza o performer brasileiro. "Eu acho que foi um movimento muito forte e foi importante que os intermitentes [do espetáculo] se aliassem a essa luta para todos os trabalhadores, mesmo que façamos parte desse outro sistema francês, a intermitência. Infelizmente não conseguimos avançar em nada nesta pauta", diz Pi.

O artista se diz frustrado por não ter discutido pautas importantes, embora consideradas "minoritárias", como a diferença na distruibuição dos investimentos culturais, "extremamente desigual na França, mesmo que o país tenha mais dinheiro do que outros para o setor cultural". "Além disso, ainda hoje em dia, existe uma diferença enorme de salário entre homens e mulheres, sem falar na pouca presença de pessoas 'racializadas' em cena, e, quando isso existe, há uma espécie de 'exotização'. O mesmo ocorre com as pessoas LGBT, sempre em festivais temáticos, mas nunca em posições de poder", sublinha.

Com luta, com dúvida, com desigualdades, mas com muita arte, parece ter chegado finalmente a hora do reencontro com a plateia para os artistas na França. Mesmo que amanhã as hesitações e os necessários debates continuem, as cortinas devem se abrir nesta primavera do Hemisfério Norte, pois, como dizia Shakespeare: O mundo inteiro é um teatro, e todos, homens e mulheres, somos apenas seus atores.

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