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Ataque em Gaza é genocídio? Presidente da Liga dos Direitos Humanos analisa a questão

Há um risco de genocídio no território palestino? Desde o início de novembro, o uso desse termo por especialistas da ONU gera debate na França. A RFI entrevistou Patrick Baudouin, presidente da Liga dos Direitos Humanos, que falou sobre o conceito de genocídio e outras ferramentas legais da Justiça internacional. 

Civis fogem para o sul da Faixa de Gaza através de um corredor de segurança, em 11 de novembro de 2023.
Civis fogem para o sul da Faixa de Gaza através de um corredor de segurança, em 11 de novembro de 2023. AP - Fatima Shbair
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Igor Gauquelin, da RFI

O relator especial dos direitos humanos nos territórios palestinos ocupados, assim como outros especialistas da ONU, falou sobre o risco de "genocídio" contra o povo palestino. Esse termo é apropriado em sua opinião? O que pensa sobre esse debate?

Patrick Baudouin: Quando se trata de supostos crimes internacionais graves, devemos sempre ter cuidado. Estas palavras não são neutras, têm significado político, humano e histórico.

Se olharmos para a situação em Gaza, veremos que o exército israelense está organizando uma operação em grande escala, com recursos militares consideráveis e bombardeios que visam o território de Gaza de forma muito indiscriminada.

Neste caso, as populações civis se tornam alvo, sendo que no caso de um conflito armado ou de uma guerra, elas devem ser protegidas. O simples fato de visá-las, ainda que os ataques atinjam prédios, por exemplo, já se enquadra na categoria de crimes de guerra. 

Em uma escala, depois do crime de guerra, e mais grave, vem o crime contra a humanidade. Ele inclui mais ou menos os mesmos atos de um crime de guerra e em particular todos aqueles que possam prejudicar a vida ou a integridade física das populações civis, mas com uma noção complementar.

Segundo a definição do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, são atos cometidos no contexto de um ataque generalizado ou sistemático, contra toda uma população civil, e premeditados. Este é o caso em Gaza? Trata-se de uma operação que não respeita as leis da guerra, as Convenções de Genebra, na medida em que não atinge apenas objetivos militares.

O que o Hamas fez em 7 de outubro são crimes de guerra no contexto de um conflito armado, mas que poderia ser qualificado de crime contra a humanidade. Os juízes dirão isso quando chegar a hora.

Em relação ao que está acontecendo em Gaza, após cerca de um mês de guerra, estamos, na minha opinião, em meio a crimes de guerra. Há controvérsias, mas sou a favor dessa classificação. Já em relação à sua pergunta sobre genocídio, serei muito mais cauteloso.

O crime de genocídio inclui assassinato de membros de um grupo, lesão corporal grave, transferência de crianças, medidas para prevenir nascimentos, etc. – mas com a intenção de destruir todo ou em parte um grupo étnico, racial, nacional ou religioso.

O elemento que poderia se enquadrar nessa definição é a transferência forçada de metade da população do norte para o sul da Faixa de Gaza. Este pode ser o início de uma tentativa de limpeza étnica, pode constituir um crime contra a humanidade. Mas não sabemos quais são realmente as intenções do Exército israelense, do governo. Penso que hoje não se pode dizer que foi feito com essa intenção. Genocídio, para mim, é o crime dos crimes e não chegamos ainda neste ponto. Talvez isso mude.

Um homem passa diante de cartazes com fotos dos reféns do Hamas colados em uma parede, em Tel Aviv, Israel, em 28 de outubro de 2023.
Um homem passa diante de cartazes com fotos dos reféns do Hamas colados em uma parede, em Tel Aviv, Israel, em 28 de outubro de 2023. © Ammar Awad / Reuters

Em termos de direito internacional, quais são os critérios que podem ajudar a qualificar um crime como genocídio?

Fui advogado em casos ruandeses e também no Camboja. Mesmo que seja um pouco diferente, ainda havia esse aspecto genocida no Camboja. Uma das características do genocídio é a “programação”. Se pegarmos o exemplo ruandês, era a crônica de um massacre anunciado. Este é um ponto muito característico.

Depois, sobre os meios utilizados para alcançar o genocídio, eles são diversos e variados em termos de horror e vão desde o facão em Ruanda até as câmaras de gás na Alemanha nazista. No Camboja, os meios ainda eram diferentes, as pessoas morriam de exaustão.

A ONU reconhece pouquíssimos genocídios. Na Liga dos Direitos Humanos, vocês acham que deveria haver mais reconhecimentos nesse sentido?

Não, eu acho que a preocupação, das organizações, e, em qualquer caso, dos advogados que atuam nessa área, é a precisão. Para o genocídio, o que me parece importante é a intenção – e isso requer programar, teorizar ou destruir um grupo totalmente ou em parte. A partir daí, nem tudo pode ser genocídio.

Algumas pessoas, com muito boas intenções, consideram que devemos usar o termo para tentar parar o que está acontecendo. É verdade que o que acontece em Gaza, diariamente, é revoltante. E ao pronunciarmos essa palavra, genocídio, mostramos o quanto é grave.

Portanto, os genocídios que foram reconhecidos, além de Ruanda, são os da Segunda Guerra Mundial. Em segundo lugar, apesar dos protestos dos turcos, acho que só podemos falar do genocídio armênio. No Camboja, houve muita discussão porque foi dentro do próprio país e entre cidadãos do mesmo país, mas acho que pode ser descrito como genocídio.

Foi uma revolução política extrema que consistiu em eliminar absolutamente todos aqueles que não se encaixavam nos moldes dessa revolução, no seu objetivo, e era preciso esvaziar cabeças e eliminar corpos. Mas, para mim, realmente se encaixa na noção de genocídio. Houve também o genocídio na Namíbia. Na ex-Iugoslávia, Srebrenica foi classificada como genocídio, o que foi muito discutido.

Se os inegáveis crimes cometidos pelos militares israelenses em Gaza são chamados de genocídio hoje, as acusações têm como alvo Israel. E não acho que podemos correr o risco de uma descaracterização por causa das repercussões que isso poderia ter sobre o povo judeu israelense.

Quando a ONU reconhece o genocídio, o que acontece em termos de mecanismos?

Pelo que eu saiba, isso permite processar os principais responsáveis. Neste caso, existe o Tribunal Penal Internacional. Sem contar que o território palestino é competente para se pronunciar a respeito, já que a Autoridade Palestina reconheceu sua jurisdição e ratificou seu estatuto, e o TPI já abriu uma investigação no início de 2021 por todos os crimes que possam ter sido cometidos na Cisjordânia, Gaza e Jerusalém Oriental desde 2014.

Isso inclui, portanto, a plena jurisdição, e também inclui os crimes cometidos em Israel pelo Hamas, já que foram os cidadãos palestinos que cometeram esses crimes e, uma vez ratificado o estatuto, o tribunal tem competência para os processar.

Além disso, a ONU permanece em uma posição de qualificação, o que pode levar a várias medidas de retaliação contra aqueles que estão no poder. Mas penso que o principal aspecto é lutar absolutamente contra a impunidade deste tipo de crime, que foi o início da justiça internacional, o seu verdadeiro início, com os tribunais de Nuremberg e Tóquio.

Palestinos feridos em bombardeios israelenses na Faixa de Gaza levados a um hospital, em Khan Younis, sábado, 12 de novembro de 2023.
Palestinos feridos em bombardeios israelenses na Faixa de Gaza levados a um hospital, em Khan Younis, sábado, 12 de novembro de 2023. AP - Fatima Shbair

De acordo com suas observações, há preocupação com o multilateralismo, do qual a Justiça é uma componente importante.

Sim, é claro. Além da natureza dramática, monstruosa, bárbara em nível humano, que é o que nos domina e, por vezes, nos remete mais à emoção do que à reação, vemos posições que rompem completamente com o multilateralismo e, em particular, com o que é percebido como dois pesos e duas medidas.

Simplificando, depois dos ataques do Hamas, vimos o Ocidente apoiar incondicionalmente a resposta israelense. Israel tem o direito de se defender, prefiro dizer o direito à legítima defesa. Por outro lado, não tem o direito de se comportar como se comporta atualmente, com uma violação total das leis da guerra, pelo menos, e com ataques a populações civis que, de alguma forma, remetem aos massacres que indignam o Ocidente, Israel e a população israelense, contra crianças mulheres, idosos e reféns. Na Palestina, em Gaza, são exatamente essas pessoas que têm sido vítimas dos ataques.

Além do bloqueio, que priva as pessoas de alimentos, remédios, água, eletricidade e da impossibilidade de atendimento médico, esses ataques encarnam crimes internacionais mais graves.

Todos sabemos o que aconteceu em termos de violações da lei e total desrespeito pelo direito internacional por parte de Israel, seja nos territórios colonizados, nos ocupados ou dentro do próprio Estado de Israel, especialmente desde o último governo de Netanyahu e a lei de julho de 2018 sobre o Estado-nação do povo judeu, que na verdade criou duas categorias de cidadãos com status de subcidadãos para as populações árabes.

Penso que deveria haver a possibilidade de recorrer aos tribunais de forma eficaz e eficiente. Acho que isso é essencial. Se você olhar o Camboja, além da mudança de regime, foi muito difícil, mesmo depois, porque muitos dos atuais governadores tiveram alguma relação com o período em que o Khmer Vermelho esteve no poder.

Mas, mesmo que poucos tenham sido perseguidos, em termos de educação da população, de memória às vítimas, acredito que esse é um ponto essencial. O Tribunal Penal Internacional deve, portanto, dispor dos meios necessários para investigar, já que é a jurisdição atual. Isso significa ratificar, que foi o que a Autoridade Palestina fez. Possivelmente, o Tribunal Penal Internacional também pode ser submetido ao Conselho de Segurança, mas ainda não chegamos lá.

O outro ponto, numa altura em que estamos um pouco desesperados com a impotência das Nações Unidas, é que penso que temos de olhar para isso de forma um pouco diferente e dizer a nós mesmos que temos de continuar a ter confiança relativa.

Apesar de todas estas fragilidades, insuficiências, e impotência desta instituição, ainda há posições fortes que têm sido assumidas por António Guterres, o atual secretário-geral. É claro que se tem a impressão de que ele está pregando muito “no vácuo” no momento, mas talvez não totalmente.

Há a Assembleia Geral, há o Conselho de Segurança, que, sob múltiplas pressões, pode, no entanto, implementar processos de paz através do reconhecimento de responsabilidades e integrar os conceitos que estão sendo discutidos nas decisões que serão tomadas.

Há, no entanto, um esforço de mediação e até a organização de conferências internacionais, para trazer soluções alternativas, já que hoje, entre Hamas e Netanyahu, não há possibilidade real de acordo.

Em outras palavras, o que quero dizer com isto é que ainda podemos continuar a dizer que temos de recorrer àquilo a que, por falta de um termo melhor, se chama comunidade internacional e aos Estados que a compõem.

E em todas as circunstâncias, em cada caso particular, há Estados que estão em condições de intervir no contexto  internacional e desta comunidade.

Assim, se tomarmos como exemplo sempre Israel/Palestina, é óbvio que os Estados Unidos detêm muitas das soluções, mas também a UE ou o Conselho da Europa, que mostraram muitas deficiências, abandonando a situação, pensando que, afinal, havia um status quo, que era ilusório.

Talvez exista uma consciência nesta ocasião que possa resultar no avanço dos mecanismos para qualificar e julgar crimes internacionais mais graves e para pensar nos processos de paz e pacificação.

Você acha que é bom um Estado legislar sobre um genocídio que ocorreu fora de seu território, como fez a França com o genocídio armênio?

Em países que não têm vínculos, isso é necessário? Não basta aceitar uma lei internacional? Mas quando não é esse o caso, porque há disputas que não nos permitem ter esse reconhecimento internacional unânime, acho que é bom que o Estado e, neste caso, o Parlamento, possa aprovar uma legislação.

O senhor diria, nesse contexto específico, que a qualificação de genocídio é prematura? É preciso tempo para falar de um genocídio e correr o risco de não alertar a tempo?

Se a análise de uma situação hoje nos mostra que estamos, de fato, no meio de um genocídio ou que ele está inevitavelmente programado, penso que devemos dizê-lo imediatamente e não esperar. Por outro lado, defendo que só devemos falar em genocídio se dois elementos estiverem suficientemente reunidos: justiça e paz.

É necessário deixar de lado a justiça em primeiro lugar para alcançar a paz? Ou, pelo contrário, a justiça deve ser colocada em cima da mesa desde o início, a fim de pressionar pela paz? Prefiro a segunda opção, levando em conta todos os casos.

Além disso, penso que temos de ser um pouco pragmáticos, e manter os dois objetivos, a paz e a justiça. Voltando ao genocídio, penso novamente na situação israelense. A afirmação do conceito de genocídio, hoje, não facilitará a cooperação necessária na busca de justiça ou de progresso no domínio da paz.

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