Erdogan quer liquidar oposição curda para voltar a governar sozinho
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Não deu outra : poucos dias depois que a Turquia anunciou que ia entrar em guerra contra os terroristas do Estado Islâmico e contra o Partido dos Trabalhadores do Curdistão – o PKK – apareceram sinais de uma nova guerra civil. Bombardeios e atentados sangrentos é o preço que o presidente turco, Tayip Recep Erdogan, decidiu impor ao seu próprio povo para continuar cinicamente no poder. Arriscar anos de violências internas e propaganda nacionalista raivosa só para ganhar possíveis eleições antecipadas.
Nas últimas eleições legislativas, no mês de junho, o AKP, o partido islâmico do presidente, perdeu a maioria absoluta, acabando com o sonho de Erdogan de mudar a constituição criando uma hiper-presidência com poderes quase ditatoriais. A rejeição do autoritarismo de Erdogan foi particularmente forte nas regiões curdas do país e nas cidades costeiras mais abertas e ocidentalizadas que votaram num partido democrático de origem curda, o HDP, que denunciava os desvios autoritários do presidente e os escândalos de corrupção envolvendo até familiares de Erdogan. Desde junho, o AKP vem tentando formar uma coalizão de governo. Mas até hoje sem sucesso já que o HDP e outros possíveis aliados parlamentares insistem em criar CPIs para apurar as denúncias de corrupção.
Sem saída, Erdogan parece querer convocar eleições antecipadas para reverter o voto de junho passado. Mas primeiro ele tem que liquidar a oposição. Daí a campanha feroz contra o HDP – que está sendo acusado de apoiar o terrorismo do PKK – e até ameaças de proibir o partido. O slogan é claro: a Turquia está em guerra contra o separatismo curdo do PKK e quem não apoiar no presidente é um traidor, inimigo da nação. O problema é que essa guerra começou há quarenta anos atrás e já fez 40.000 mortos. O próprio Erdogan havia lançado a ideia de um processo de paz para resolver a questão dos curdos turcos que vivem na metade do território nacional. Desencadear uma guerra para ganhar uma eleição é um tiro no pé da Turquia que está arriscada a ter que agüentar vários anos de uma nova guerra civil.
Mas a estratégia de Erdogan é também um pouco mais sofisticada. Os curdos do PKK na Síria são os melhores aliados dos Estados Unidos e da coalizão árabe que estão combatendo os terroristas do “Estado Islâmico”. Para sair bombardeando os curdos, o governo de Ancara precisava de um aval americano. Além do mais, a Turquia estava começando a se sentir bem sozinha na região, depois do acordo nuclear assinado entre os Estados Unidos e o Irã. Estava na hora de mostrar que o país era um fiel membro da OTAN e velho aliado do Tio Sam. A negociação foi rápida e eficiente: a Turquia entrava oficialmente em guerra contra o Estado Islâmico e abria a sua famosa base aérea de Incirlik para os aviões e drones americanos. Em contrapartida, Erdogan ganhava o apoio americano para atacar o PKK e criar uma “zona de segurança” em território sírio, colada à fronteira turca. Uma zona que será entregue a forças combatentes sírias controladas pelo poder turco e que, de fato, impede a consolidação de um território autônomo curdo na Síria ao longo da fronteira turca.
Mais uma vez, como desde a Primeira Guerra Mundial, os curdos são sacrificados no altar da geopolítica regional. Mas esse sacrifício só vai complicar a tragédia do Oriente Médio. Anos de uma nova e sangrenta guerra civil na Turquia não é bom para ninguém. Quanto à “zona de segurança” controlada por Ancara, ela poderá se tornar o embrião de uma nova entidade independente, acelerando a partilha da Síria entre os islamistas pró-turcos, Damasco e a costa ocidental alauítas, e pequenas regiões autônomas curdas. Uma situação nada alvissareira para a estabilidade da região.
Resta a saber se os turcos vão seriamente enfrentar também o terrorismo do Estado Islâmico. Até agora foi só de boca para fora – e, por baixo do pano, ajuda aos extremistas. Mas algum preço Erdogan vai ter que pagar para manter a caução dos americanos aos seus projetos de poder.
Alfredo Valladão, professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris, escreve às terças-feiras para a RFI.
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