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Linha Direta

Calote, corralito e Cavallo: vendo a Grécia, argentinos relembram crise de 2001

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Restrições ao saque de dinheiro, feriado bancário, filas imensas para retirar dinheiro do banco, default da dívida, exigências do FMI. O que bem poderia ser a Grécia de agora foi exatamente o cenário da Argentina no final de 2001. O paralelo social e econômico entre os dois países, depois de quase 14 anos, tem sido traçado não só por analistas econômicos, mas também pelos próprios argentinos, provavelmente os únicos que conhecem em carne própria o que os gregos estão vivendo.

O ministro Domingo Cavallo ao lado do presidente De la Rúa, em plena crise de 2001.
O ministro Domingo Cavallo ao lado do presidente De la Rúa, em plena crise de 2001. Victor Hugo Bugge / Creative Commons
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Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires.

Os argentinos estão vendo a realidade grega como um déjà vu. Os sintomas da crise grega são bem conhecidos pelos argentinos. É verdade que a crise ainda não é o colapso sócio-econômico e político que se viveu aqui, mas este começo é muito parecido.

Em novembro de 2001, o FMI soltou a mão da Argentina. O temor de uma desvalorização da moeda somado ao de um confisco dos depósitos levou a uma corrida bancária. No comecinho de dezembro de 2001, quando a sangria de depósitos ameaçava o sistema bancário, o governo anunciou restrições ao saque que, dias depois, foi apelidado de "corralito", curralzinho em português.

O peso argentino estava atrelado ao dólar em 1 a 1. O governo só permitia retirar US$ 250 por semana. As filas para retirar dinheiro eram quilométricas. Essas cenas estão vivas por aqui. Todo mundo passou por isso. Somente 40% da população tinha dinheiro nos bancos, mas os outros 60% viviam do que os 40% derramavam na economia.

O sistema bancário é como o sistema circulatório de um organismo. Sem circulação, a economia para. E a Argentina entrou em colapso. Junto, caíram governos. Foi quando a Argentina teve os famosos cinco presidentes em 10 dias. Um deles, antes de renunciar, anunciou a moratória da dívida.

Diferenças

A restrição ao saque é a mais visível das semelhanças. A origem da crise é outra: o déficit fiscal. Como se financia o déficit é outra semelhança: com endividamento. Se a Grécia está atrelada ao euro, a Argentina estava ao dólar.

Se a crise grega corre o risco de contagiar outros países, a crise argentina arrastou o mercado financeiro brasileiro e afetou completamente o Uruguai. No Uruguai, em 2002, houve corrida bancária e o governo precisou de um crédito salvador dos Estados Unidos para poder devolver os depósitos dos correntistas de dois bancos públicos que fecharam as portas por não terem mais dinheiro.

A principal diferença até agora com a Grécia é o caos que por lá ainda não houve. Aqui na Argentina, a população saiu às ruas no primeiro panelaço que fez o ex-ministro da Economia, Domingo Cavallo, renunciar. Horas depois, quem renunciaria seria o então presidente Fernando de la Rua, que precisou fugir num helicóptero porque a Praça de Maio era um campo de batalha entre manifestantes e policiais.

Nesse período, a loja que abrisse corria risco de ser saqueada. Nas periferias e por onde passavam as manifestações diárias, havia saques aos comércios. Isso também ainda não aconteceu na Grécia.

Sair do euro será pior

Na Argentina, as restrições ao saque viraram confisco temporário dos depósitos. O dinheiro em cadernetas de poupança e em fundos de renda fixa foram congelados e retidos. Ninguém podia ter acesso ao seu próprio dinheiro. Mas isso só aconteceria aqui em janeiro de 2002. Os bancos precisaram ser cercados porque eram atacados pela população em fúria.

Esse é um risco que a Grécia corre: se a Europa e o FMI soltarem a mão do país, as restrições ao saque podem virar confisco. A situação piora se o país sair do euro. O peso argentino sofreu uma forte desvalorização e as pessoas, quando receberam os seus depósitos, receberam em pesos desvalorizados e não mais em dólar.

Quem não aceitou essa perda de quase metade do valor, recebeu títulos públicos que só foram pagos 10 anos depois. Se isso acontecer, dificilmente o governo grego resiste no poder como aconteceu na Argentina. Antes disso, a inflação dispara, o desemprego e a pobreza vão às alturas.

Houve muitos casos de pessoas que tinham vendido o carro ou a casa, tinham depositado o dinheiro e, enquanto esperavam para comprar outro imóvel, veio o congelamento dos depósitos. Alguns conseguiram uma liminar para conseguir reaver o dinheiro, mas a maioria não. Houve suicídios e gente que morreu por depressão.

Transplante de rim

Houve o caso de um famoso jornalista. Horacio Garcia Blanco tinha US$ 570 mil presos no banco. Precisava do dinheiro para um transplante de rim na Espanha. Uma juíza lhe negou o acesso ao dinheiro. Ele morreu três meses depois. Mas a mesma juíza e o marido dela depois retiraram o dinheiro deles do banco.

Há um ano, a Argentina entrou num novo default por impasse jurídico. Um juíz de Nova Iorque determinou que o país só pode pagar aos credores que aceitaram as reestruturações da dívida se pagasse também aos fundos especulativos que não aceitaram.

A verdade é que a Argentina nunca terminou de sair daquele default de 2001. Por isso, o país não tem acesso ao crédito internacional. Por outro lado, cada vez exporta menos e ganha menos dinheiro com o que exporta porque o valor das commodities tem diminuído. E não recebe investimentos diretos. O resultado é a falta de dólares.

Essa falta de dólares afeta a vida cotidiana porque impõe restrições à entrada de importados. Faltam produtos importados manufaturados e faltam os insumos importados para terminar os produtos nacionais. Produtos básicos do dia-a-dia, como medicamentos.

As empresas não podem remeter dinheiro ao exterior e, para quem quiser comprar dólares para viajar, por exemplo, há um controle de câmbio. No fundo, 14 anos depois, a Argentina ainda convive com uma espécie restrição ao saque, mas em moeda estrangeira, um tipo de "corralito" cambial.

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