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Fato em Foco

Mobilização internacional contra o Ebola é menor do que em outras tragédias

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Quem não se lembra de Michael Jackson cantando We Are The World na televisão, nos anos 80, em uma campanha contra a fome na África? A década marcou o auge e, em seguida, a diminuição das ajudas internacionais em grande escala ao continente. A partir de 1985, as principais social-democracias européias reduziram seus orçamentos para suporte humanitário. O fim da Guerra Fria e do Mundo bipolar também contribuiu para uma espécie de esquecimento da África.

Comida é distribuída entre a população em quarentena na Libéria
Comida é distribuída entre a população em quarentena na Libéria REUTERS
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Corta para 2014. O alerta feito na terça-feira pela organização Médicos Sem Fronteiras não dá margem a interpretações: o mundo está perdendo a guerra contra o Ebola. O diagnóstico de que a epidemia está avançando é unânime entre especialistas, mas também é unânime a surpresa destes mesmos especialistas com a falta de mobilização por parte de outros países, especialmente os do Ocidente, em providenciar ajuda.

O depoimento de José Antonio Bastos, presidente da Médicos Sem Fronteiras da Espanha, à RFI em Espanhol, dá a dimensão do problema: “Depois de seis meses de epidemia, o número de casos nas últimas três ou quatro semanas duplicou. Estamos em um momento de ascensão rápida da epidemia. É uma situação fora de controle, com pacientes se acumulando na entrada dos centros de tratamento, não há camas suficientes. Há uma situação social de muita atenção e um potencial de violência enorme, com casos de desatenção a doentes e mortos. A situação é catastrófica.”

José Antonio Bastos compara a situação atual com o terremoto no Haiti, que teria gerado uma comoção internacional mais intensa: “Se a comunidade intencional continuar enviando equipes limitadas de especialistas para nações limitadas em dinheiro e material, então claro que a epidemia, que já está fora de controle, ficará ainda mais. Se a comunidade internacional tiver uma reação contundente e séria, como a reação que vimos de solidariedade no terremoto do Haiti ou no ciclone das Filipinas, então é claro que se pode deter a epidemia”.

Africanos estigmatizados

Para a professora Leila Hernandez, coordenadora de pesquisa sobre a África da Universidade de São Paulo, o terremoto do Haiti, por exemplo, mobilizou mais a população mundial e os governos por diversos fatores: “O Ebola não tem passado em tempo real. No caso do Haiti, a gente viveu o terremoto como se ele estivesse aqui dentro, como se estivesse próximo. Parece que a questão do Ebola passa mais como se fosse responsabilidade dos próprios africanos. Falam da ignorância, da falta de higiene dos próprios africanos. Tudo o que tem de negatividade é imputado a eles próprios. A tragédia quase que aparece como tendo sido produzida por eles. E onde entra o Ocidente? No medo de que isso passe para nós”.

A França anunciou nesta quarta-feira, por exemplo, o envio de ume equipe de cinco pessoas para ajudar ao combate da doença, sendo quatro delas, médicos. Nada comparável aos 5 mil soldados que enviou, desde o ano passado, para a intervenção militar no Mali. Segundo a professora Hernandez, a diferença entre os dois casos seria a quantidade de interesses políticos e econômicos envolvidos em um e em outro: muitos no Mali, poucos em uma epidemia.

Por trás de tudo, estaria uma visão histórica estigmatizada sobre o continente africano: “Todas as questões acabam passando por uma inferioridade do africano. Quando se fala em epidemia, o que mais aparece é que os africanos ainda fazem parte de um suposto quarto mundo, há uma carga de adjetivá-los como primitivos que vivem na miséria e que desconhecem formas possíveis de responderem às vicissitudes da vida. Essa visão desconsidera que este processo teve uma ação condicionante muito forte do colonialismo europeu na África”.

A professora Leila Hernandez vê apenas duas possibilidades para que o mundo comece a se mobilizar sobre a questão do Ebola: caso a doença se espalhe para além das fronteiras africanas ou se aproxime perigosamente de regiões de interesse econômico dentro do continente. O que não é o caso até agora. A OMS estima que, no ritmo atual, serão necessários de seis a nove meses para se conseguir controlar a epidemia, a um custo de € 370 milhões. Ainda segundo o órgão, o número de casos, que hoje ultrapassa os 3 mil, pode chegar a 20 mil nos próximos meses. Ou seja, estaríamos apenas na ponta de um iceberg.

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