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O Mundo Agora

Putin nunca escondeu a sua nostalgia dos tempos da União Soviética

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A crise na Ucrânia traz de volta a geopolítica para o centro das relações internacionais. Aquela carcomida geopolítica do século XX, feita de blocos inimigos impondo aos países vizinhos uma soberania limitada e onde a guerra entre Estados era uma opção provável. De repente, a atual geoeconomia do século XXI, num mundo interdependente onde as ameaças vêm do terrorismo, do tráfico de drogas ou das catástrofes climáticas, está sendo atropelada pela velha competição de forças militares.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, disse nesta terça-feira, 4 que envio de tropas russas para Ucrânia "não é necessário no momento"..
O presidente da Rússia, Vladimir Putin, disse nesta terça-feira, 4 que envio de tropas russas para Ucrânia "não é necessário no momento".. REUTERS/Alexei Nikolskiy/RIA Novosti/Kremlin
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A cínica invasão militar da Criméia pelas tropas russas, em nome da defesa das minorias russófonas na Ucrânia (que aliás não foram atacadas por ninguém), faz parte da grande ambição de Vladimir Putin de voltar aos tempos da União Soviética. O presidente russo, antigo agente do KGB, nunca escondeu a sua saudade dos tempos do bloco comunista. Claro, hoje não se fala mais em comunismo.

O projeto de Putin é criar uma União Euro-Asiática a partir de acordos econômicos exclusivos que transformariam todos os vizinhos em semi-colônias de Moscou. Quando as autoridades russas declaram que tem todo o direito de defender militarmente a sua zona de influência, elas estão só celebrando a visão de que grandes potências podem dividir o mundo em clientes e tributários.

Só que a realidade das cadeias produtivas globais, da Internet, da informação instantânea e dos mercados de capitais globalizados não funciona mais assim. Em 24 horas, a Bolsa de Moscou e o rublo foram para a cucuia.

O aventurismo militarista de Putin é perigosíssimo porque o sonho de ressuscitar o poder da ex-União Soviética não tem sustentação nem econômica, nem política, mas pode perfeitamente provocar conflitos no mundo inteiro e até uma guerra generalizada.

Depois da ocupação da Criméia, Moscou não poderá mais recuar. Mas os Estados Unidos e a Europa também não podem ficar sem fazer nada. Até agora, as potências ocidentais sempre tentaram apaziguar o valentão do Kremlin. A tal ponto que essa boa vontade foi interpretada por Moscou como prova de covardia e fraqueza.

Quando a Rússia invadiu a Geórgia e desmembrou o país com a mesma desculpa de salvar as minorias russas, todo mundo olhou para outro lado. Na hora do “vamos ver” no caso das armas químicas sírias – e agora no fracasso da conferência de paz sobre a Síria – Obama deixou os russos deitarem e rolarem na defesa de seu aliado Bachar El-Assad.

É claro que Putin acha – e com certa razão – que pode invadir a Ucrânia impunemente. A história se repete: quando Hitler invadiu a Tchecoslováquia em 1938 e anexou parte do país em nome da defesa da minoria alemã, Londres e Paris aceitaram o fato consumado com os famigerados acordos de Munique. Deu no que deu.
A curto prazo, é claro que os europeus e americanos não estão dispostos a declarar a guerra à Rússia pelos belos olhos da Ucrânia. Mas lavar as mãos também não é possível: a Europa é um lugar muito perigoso, estratégico demais. Todos os vizinhos da Ucrânia, que também são membros da OTAN, não podem viver tranqüilos com tamanho precedente.

Os países bálticos contêm fortes minorias russas nos seus territórios. Para a Polônia, a Rússia é um inimigo hereditário que nos últimos séculos já esquartejou o seu território várias vezes. Uma Ucrânia atirada no caos pelas tropas russas criaria uma situação profundamente desestabilizadora na Europa e até na própria Rússia.

Os europeus só poderão estreitar mais ainda a sua aliança com os Estados Unidos e aumentar as pressões contra Moscou, enquanto que Putin só poderá descambar para uma ditadura interna aberta e tentar responder às sanções ocidentais com outras aventuras na própria vizinhança e em outras partes do mundo.

Pior ainda: acatar o argumento da defesa de minorias nacionais é a porta aberta para que seja utilizado na Ásia, na África ou até na América Latina, criando imediatamente tensões, movimentos nacionalistas chauvinistas e preparativos bélicos.

A Rússia de Putin não é a União Soviética. No mundo globalizado ela é extremamente mais vulnerável. A invasão da Criméia está obrigando as potências ocidentais a se juntarem para “conter” o militarismo russo. Por enquanto a resposta só pode ser diplomática, mas a prazo não haverá outro jeito senão utilizar também as ameaças militares. Isto será trágico para o mundo inteiro.

Uma vida internacional organizada em blocos antagônicos não deixa nenhum espaço para políticas mais independentes. É um mundo onde quem não está com um dos lados está com o outro. Se Putin não encontrar um jeito de recuar vai acabar vindo chumbo grosso por aí. Mesmo que ninguém queira chegar nisto, como em 1914, a exatos 100 anos atrás, quando estourou a Primeira Guerra Mundial.

Clique no ícone acima para ouvir a crônica de política internacional de Alfredo Valladão, professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris.
 

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