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Unasul/Crise no Brasil

Crise no Brasil pode ter efeito dominó na América Latina, diz chefe da Unasul

O secretário-geral da União Sul-americana de Nações (Unasul) e ex-presidente da Colômbia, Ernesto Samper, considera que a governabilidade está ameaçada no Brasil. Em entrevista exclusiva à RFI, ele analisa a situação brasileira e teme que a crise política tenha um efeito dominó nos países da região.

O secretário-geral da Unasul, Ernesto Samper, comentou o impacto que a crise brasileira pode ter nos vizinhos da região.
O secretário-geral da Unasul, Ernesto Samper, comentou o impacto que a crise brasileira pode ter nos vizinhos da região. REUTERS/Marco Bello
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Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires

O ex-presidente da Colômbia, que conduz o organismo que reúne todos os 12 países sul-americanos, se diz preocupado com a "a continuidade democrática" na região. Para ele, o Brasil sofre de um problema que também afeta a vizinhança: a interferência de juízes, veículos de comunicação e grupos empresariais na política. Na entrevista a seguir, Samper fala sobre a posição da Unasul e afirma que a maneira como o Brasil vai superar a crise pode ser também um exemplo para a região.

RFI – Qual é o impacto da crise brasileira nos seus vizinhos?
Ernesto Samper –
O Brasil é muito importante na região, que se movimenta em função do país em muitos assuntos. Por isso, acompanhamos muito de perto o que acontece nesse momento. Esperamos que tudo isso tenha um desenlace que sirva à região. Até mesmo na maneira como superar a crise, o Brasil pode dar um bom exemplo. Somos conscientes de que parte do que está acontecendo também ocorre em toda a região. Ao danificar-se a economia, danificou-se a política. E alguns poderes fáticos aproveitam-se disso para pescarem em rio revoltoso. Independentemente de as pessoas terem uma opinião mais ou menos favorável sobre o governo e a chefe de Estado, o fato absolutamente inegável é que a presidente é a representante do povo brasileiro neste momento. É quem tem a legitimidade das credenciais conquistadas pelas eleições. Tentar contrariar essa realidade não é fácil. Não são as sondagens que vão substituir os resultados das urnas.

RFI – Como agem esses poderes fáticos?
Samper –
Há um fenômeno de “judicialização da política”: como eu não posso convencer o meu adversário sobre meus argumentos, então recorro a um juiz para o castigar ou resolver as nossas diferenças. A crise do sistema representativo dos partidos como porta-vozes dos interesses comuns fez com que, entre outras consequências, os políticos levassem aos juízes as diferenças que antes se ventilavam nos cenários democráticos. Esse fenômeno é muito perigoso para democracia porque, da judicialização da política pode-se chegar facilmente a politização da Justiça. Que juízes ou procuradores, estimulados pelo protagonismo mediático, pelos cantos de sereia da opinião, decidam assumir papéis políticos. Isso vai de encontro ao que deve ser o comportamento neutro e totalmente independente da Justiça.

RFI – Quais são esses poderes fáticos?
Samper –
São atores econômicos e sociais que fazem política sem responsabilidade política. Setores econômicos que litigam em função dos seus próprios interesses. Veículos de comunicação que trabalham com o escândalo mediático. Algumas ONGs, especialmente de caráter internacional, que estão pressionando. Certos atores estão fazendo política sem assumir responsabilidades políticas e podem comprometer a governabilidade democrática de um país. Incluo alguns juízes que podem estar fazendo uma utilização indevida sobre assuntos políticos.

RFI – Seguindo essa linha de "poderes fáticos" e de justiça com fins políticos, o governo brasileiro argumenta que um golpe está em marcha. O senhor vê como um golpe o que está acontecendo no Brasil?
Samper –
Acredito que o governo tenha suficientes elementos de avaliação para chegar a essa conclusão. Até agora não aconteceu uma decisão judicial ou política que possa confirmar que se vai nessa direção, mas seria muito grave que se confirmasse. Seria muito grave para democracia e não só para o Brasil, mas para toda a região.

RFI – Nesse caso a Unasul se manifestaria?
Samper –
Essa decisão caberia aos chefes de Estado, mas seria uma situação tão grave que eles teriam de pronunciar-se.

RFI – Um desses chefes de Estado, o boliviano Evo Morales, tinha pedido uma reunião no Brasil para apoiar Dilma Rousseff e Lula e para impedir um golpe jurídico ou parlamentar. Há algum projeto de manifestação da Unasul de apoio à presidente brasileira?
Samper –
Prevaleceu a ideia de que, enquanto os acontecimentos não se desenvolverem no Brasil, enquanto não houver fatos judiciários e políticos que realmente permitam ter a certeza de que se tenha tomado um rumo errado e de que se tenha cometido erros que devem ser corrigidos, não haverá um pronunciamento dos presidentes. Decidimos que nos ateríamos ao funcionamento dos mecanismos que o estado de direito no Brasil estabelece para a solução desse tipo de conflito e que, até o momento, é o que tem acontecido. Até que não se desenvolva o impedimento da presidente e a forma como isso acontecer, qualquer pronunciamento da Unasul poderia ser visto como algo impertinente.

RFI – Como algo contraproducente?
Samper –
Sim. Mas isso não quer dizer que não haja uma convicção de todos os chefes de Estado da Unasul de apoiar a institucionalidade democrática que hoje a Presidência representa sem dúvidas.

RFI – Uma crise brasileira poderia desestabilizar a região?
Samper –
Se houver circunstâncias que não se percebam como um normal desenvolvimento dos acontecimentos políticos numa democracia, isso poderia ter um efeito dominó na região e que, em outros países, possam reproduzir-se situações parecidas. O Brasil é um ator muito importante na região. É um exemplo em coisas positivas, mas também poderia ser em fenômenos negativos. Tomara que não seja assim. A governabilidade no Brasil está ameaçada por esses poderes fáticos e esses acontecimentos são muito preocupantes.

RFI – Nos últimos 10 anos, a região teve basicamente dois modelos: uma esquerda pragmática simpática aos mercados e uma esquerda combativa de discurso anti-imperialista e de intervenção nos mercados. Para o grupo de países que seguiam o modelo brasileiro de crescimento com equidade social, há um impacto ainda maior?
Samper –
De alguma maneira, sim. Porque o modelo brasileiro, nos últimos 10 anos, teve muita influência. Independentemente de questões ideológicas, o Brasil traçou linhas que marcaram. Por exemplo: a importância do esforço social nas estratégias de crescimento. As políticas implementadas pelo presidente Lula na erradicação da pobreza, de segurança alimentar, escolar e de saúde pública. O Brasil foi um exemplo e seria muito preocupante que esses efeitos tivessem um recuo. De fato, um dos principais problemas que a região tem é a possibilidade de que, como consequência desta crise econômica, haja um retrocesso nos milhões de pobres que tinham saído da pobreza.

RFI –Não recuar nos níveis de pobreza é o principal desafio da região?
Samper –
Claro. Se nós voltarmos atrás no caminho que conseguimos andar nesses últimos dez anos de melhoras nas condições de vida – e foram todos os países, independente da sua afinidade ideológia – teremos gerado a maior de todas as frustrações dos últimos anos.

RFI – Um dos três eixos da Unasul é "defender a continuidade democrática". Nesse ponto, o Brasil é o desafio mais urgente?
Samper –
Sim. Sobre o Brasil, neste momento, há uma nuvem escura. A governabilidade democrática está ameaçada. Eu ainda não digo que haja uma ruptura ou uma situação incontrolável. Temos de esperar o desenvolvimento dos acontecimentos, especialmente durante as próximas semanas, para podermos dar um parecer definitivo.
 

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